BCE mantém o rumo em direção à normalização monetária: as primeiras reações das gestoras internacionais

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Créditos: Kiên Lê/European Central Bank

Quem esperava um banco central mais acomodatício em resposta ao conflito entre a Rússia e a Ucrânia terá ficado surpreendido. Uma guerra e as suas consequências não desviam o BCE do seu caminho de normalização monetária. Na reunião de março, a entidade liderada por Christine Lagarde confirmou o fim do Programa de Compras de Emergência da Pandemia (PEPP). O Programa de Compra de Ativos (APP) será reforçado para mitigar o impacto, mas terminará mais cedo do que o anunciado na reunião de fevereiro (agora em junho). Isto é, o tapering acelera.

“Ninguém gostaria de estar no lugar de Christine Lagarde neste momento”, reconhece Wolfgang Bauer, gestor da equipa de obrigações da M&G Investments. Agora as coisas não são tão simples. “Tentar estabilizar os mercados e ao mesmo tempo conter a inflação, representa um conflito de objetivos. E, no fim das contas, temos de ceder”, afirma. Na sua opinião, se o BCE avançar com a aceleração da redução das compras de ativos, os investidores poderão em breve encontrar-se num novo ambiente de mercado em que os bancos centrais deixem de proporcionar uma rede de segurança”.

Palavra-chave: opcionalidade

O BCE tem tentado jogar a carta da flexibilidade, da dependência dos dados. A palavra-chave no discurso de Lagarde é “opcionalidade”. Mas o tom restritivo da reunião de março é inegável. “O BCE mostrou-se, de um modo geral, hawkish, sugerindo que as preocupações inflacionistas se intensificaram desde a última reunião, refletindo principalmente o impacto do aumento dos preços da energia nos custos, mas também alguns aspetos internos, incluindo o atual endurecimento do mercado de trabalho, com uma taxa de desemprego agora num mínimo histórico de 6,8% na Zona Euro”, reconhece Silvia Dall'Angelo, economista sénior da Federated Hermes.

Lagarde aperta, mas não estrangula. Pelo menos está a tentar convencer o mercado disso. Neste momento, não se casam com a ideia de uma subida de taxas este ano. Mas também não a negam. Sim, deram uma migalha acomodatícia. Uma nuance no seu discurso realçada por Pietro Baffico, economista europeu da abrdn: a mudança no forward guidance. Acrescentaram que qualquer subida de taxas ocorrerá algum tempo depois do fim das compras líquidas.  Atenção ao discurso: em vez de “em breve” será agora “gradual”.

Claro que, como recorda Dave Chappell, gestor sénior de obrigações na Columbia Threadneedle Investments, a redução da linha temporal do tapering reaviva as expetativas de que o BCE possa aumentar a sua taxa de depósitos para perto de zero até ao final do ano. Um nível não visto desde meados de 2014.

Uma postura delicada

Outro detalhe a analisar da reunião são as previsões macroeconómicas atualizadas da instituição. Cortam o crescimento e aumentam a inflação. Mas, curiosamente, continuam a colocar a previsão de inflação para 2024 um pouco abaixo da meta de 2%. Na opinião de Baffico, isso implica que as condições para a descolagem do BCE ainda não estão reunidas, embora isso também possa mudar nos próximos meses.

Nicolas Forest, responsável global de Investimentos em Obrigações da Candriam, define-o muito bem: é um exercício delicado para Christine Lagarde. Não só reviu em alta as previsões do BCE para a inflação (5,1% em 2022) como fez descer o crescimento esperado. E um facto importante que Forest sublinha: os dados revistos da inflação para 2022 são dos mais elevados da história. Por isso, o especialista não ficaria surpreendido se a pressão para a normalização monetária fosse maior se os valores da inflação continuassem a ser revistos em alta, especialmente para 2023 e 2024. “O BCE parece estar mais do que nunca apanhado no fogo cruzadoA inflação está a ficar fora de controlo e há uma guerra às portas da Europa”, afirma.

As obrigações reagem

Assim, a reação do mercado de obrigações não surpreende. “Para sublinhar a incerteza que os investidores estão a enfrentar, as yields dos títulos da zona do euro e o euro dispararam após a decisão”, diz Baffico. E o especialista não descarta maior volatilidade nos próximos meses. Afinal, o BCE mantém as suas opções em aberto. “A sua abordagem baseada em dados pode levar a mais ajustes de política em qualquer direção”, diz ele.

E é isto que parece estar a ser refletido nos preços nos mercados. “As compras de ativos foram usadas como um cobertor para reprimir as faíscas de incerteza na Europa na última década. Num choque geopolítico de duração e intensidade desconhecidas, os mercados foram claramente apanhados de surpresa pela decisão do BCE de começar a reduzir esta rede de segurança”, diz Oliver Blackbourn, gestor de carteiras da equipa multiativos da Janus Henderson. Além disso, os mercados aumentaram a previsão de aumentos das taxas de juro, apesar de o comunicado do BCE incluir uma frase claramente destinada a desaconselhar esse movimento. O especialista está preocupado com os danos colaterais que já se refletem nos spreads de crédito soberanos europeus periféricos, com as yields italianas a subir mais do que as equivalentes alemãs.

O mercado por enquanto está a refletir nos preços um aumento de 25 pontos base na reunião de outubro. E é um cenário que Lale Akoner, economista do BNY Mellon IM, não descarta. Um aumento, mas modesto. Que não irá alterar automaticamente as condições monetárias neste ambiente macro altamente incerto. E não é necessariamente negativo.“Um aperto modesto aliviará as preocupações com a inflação no médio prazo, mas também leva em conta a crescente ameaça à procura agregada da crise na Ucrânia”, argumenta.

Gestores ainda à espera de um BCE mais cauteloso

Embora o tom ríspido só tenha sido reforçado nesta reunião, o cenário central com o qual a maioria dos gestores se movimenta é de um BCE mais cauteloso. "No mínimo, a incerteza relacionada com a guerra fará com que o BCE proceda de forma cautelosa e gradual", insiste Dall'Angelo. Na pior das hipóteses, vê que o BCE pode ter que recorrer a um novo pacote de emergência e adiar a descolagem do aperto monetário. "Embora pareça que as alavancas fiscais disponíveis, tanto na UE como ao nível nacional, terão que fazer o trabalho pesado em resposta às consequências negativas e possivelmente piores da guerra na Ucrânia", qualifica.

Largarde falou em opcionalidade. Reconhece que estão a trabalhar com dois cenários (adverso e grave), calibrando o possível impacto da guerra na Ucrânia. Na opinião de Axel Botte, estratega global da Ostrum AM (afiliada da Natixis IM), o pior resultado levaria a uma postura mais acomodatícia. “Assim, a postura agressiva de hoje tem alguns riscos negativos. O BCE também pode precisar de tempo para avaliar o impacto esperado das despesas da UE na diversificação energética e na defesa. 

Os gestores dão tempo ao BCE para avaliar o impacto da guerra. “À medida que o choque no crescimento se torna mais aparente nos dados das próximas semanas, provavelmente mudará o seu foco da inflação alta para tentar limitar os problemas económicos e de mercado à medida que a invasão da Ucrânia e as suas consequências se desenrolam e se espalham pelo sistema”, prevê Anna Stupnytska, macroeconomista da Fidelity International. Não esperam que o BCE aumente as taxas este ano (apesar da mudança nos preços de mercado que ocorreu por volta de outubro após a reunião daquele mês). E acreditam que o risco está inclinado para mais QE, não menos. Especialmente se o fornecimento de gás da Rússia para a Europa for interrompido. Dito isto, Stupnytska adverte: os limites da incerteza permanecem altos, atualmente.

Uma leitura positiva

Há especialistas que até interpretam este movimento como uma leitura positiva. Na opinião de Ulrike Kastens, economista para a Europa da DWS, é um passo claro para a normalização da política monetária, mas com a porta dos fundos aberta. Ou seja, ao contrário da Reserva Federal, o BCE não prevê aumentos rápidos e agressivos nas taxas de juro. A presidente do BCE enfatizou expressamente que os aumentos das taxas de juro também devem ser apenas graduais.

Frederick Ducrozet, economista da Pictet WM, segue uma linha semelhante. "O resultado final é que as preocupações com a inflação dominam", diz. O especialista refere-se aos dados. No momento, os cenários alternativos para 2024 são: adverso, inflação de 1,6% e grave, inflação de 1,9%, geral e core. “Em nenhum destes cenários o BCE precisaria apertar significativamente a sua política monetária. O BCE considera cada vez mais provável “que se estabilize em torno de 2% em todos os cenários”, analisa.