Do QE ao QT: a liquidez dos bancos centrais começa a secar progressivamente

Créditos: Vitor Duarte

A grande experiência do quantitative easing não é algo do pós-pandemia. Quem trabalha nos mercados ou os acompanha desde a crise financeira, lembrar-se-á da polémica que se gerou em 2008 e 2009.  Nascia então a época da injeção de liquidez massiva no sistema financeiro por parte dos bancos centrais da Europa e dos Estados Unidos. “A economia dos EUA entrará em hiperinflação aproximando-se dos níveis do Zimbabwe, porque a Reserva Federal estará relutante em aumentar as taxas de juro”, dizia então o investidor Marc Faber, conhecido pelo seu pessimismo. Foi preciso, no entanto, uma década, uma pandemia e sérios constrangimentos daí resultantes para efetivamente se materializar algo mais próximo da sua previsão.

Contudo, materializado um cenário de inflação muito elevada - nada como hiperinflação ou nada como no Zimbabwe, mas elevada-, finalmente vimo-nos num momento de mercado em que as taxas de juro sobem acentuadamente e o quantative easing começa efetivamente e a um ritmo relevante a dissipar-se. Em tal contexto, a FundsPeople, em conjunto com a Carmignac, promoveu uma discussão entre gestores e outros profissionais do mercado nacional para, entre outros temas, discutir o reverso da medalha da flexibilização quantitativa, o quantative tightening (QT).

“Vejamos o que aconteceu há um ano e o que deverá acontecer no futuro. Há pouco mais de 12 meses na reunião de Jackson Hole de 2021 a inflação não era um problema muito relevante, ou pelo menos previa-se que fosse mais temporária do que se veio a realizar. A bund a um ano estava a  1,68% e a T-bill a quase 4%. Hoje, a bund ultrapassa os 2,1% e a T-note os 3,7%. Já estamos a sentir o efeito da nova atitude dos bancos centrais”, introduz Ramón Carrasco para contextualizar o momento de mercado.

Contudo, o profissional acredita que os Estados Unidos se encontram vários meses à frente da Europa no que diz respeito ao ciclo económico. “Nos Estados Unidos o mercado espera novos cortes nas taxas apenas em 2024, enquanto na Europa a incerteza deverá fazer com que o ciclo se prolongue ainda mais em 2023 e novos cortes de taxas serão efetivos em 2024. Assim, teremos um impacto relevante da retirada de liquidez dos bancos centrais, mas será mais forte o impacto na Europa”, diz.

André Braz, gestor de Carteiras na Santander Asset Management não está menos pessimista. “O QT é muito pior em termos do impacto na estrutura de mercado do que a subida de taxas”, afirma categoricamente. “E em termos dos passos que estão a ser dados, a atitude dos bancos centrais ainda não é muito agressiva e alimenta expetativas económicas menos pessimistas. Enquanto não tivermos um QT agressivo, as pessoas vão achar que podemos regressar ao ponto em que estávamos antes de tudo isto começar”, acrescenta.

Para o profissional, os bancos centrais não dão a devida importância a esta via de aperto monetário nos seus discursos. “Se o passarem a fazer, vão gerar um impacto relevante em termos da economia e dos ativos de risco”.

Prolongar a dor?

Para João Zorro, responsável de Ações e Obrigações da GNB Gestão de Ativos, uma evidência que se destacou ao longo da última década foi a correlação de índices como o S&P 500 e os gráficos que mostram a evolução do balanço dos bancos centrais. “Será de assumir que se começarem a retirar liquidez de forma mais agressiva, o efeito será semelhante na queda ao que foi na subida”, diz.

O profissional vê já algum impacto na maneira como o mercado se comporta. “Tenho visto cada vez mais dificuldade em que as operações de mercado se concretizem da mesma forma que acontecia anteriormente . Vemos muitas posições curtas. Os investidores emprestam todo o tipo de ativos para esse efeito, como resultado do barato que tem sido fazê-lo. À medida que a liquidez se dissipa e os custos sobem, por via das taxas, o impacto poderá ser importante”, descreve o especialista.

Por outro lado, o profissional releva o quanto os bancos centrais se tornaram politizados. “Se executarem o QT de forma lenta e progressiva, estarão apenas a prolongar a dor nos mercados. Deveriam mover-se rapidamente”, diz.

No entanto, se assim for, segundo João Zorro, os mercados de obrigações vão refletir as expetativas e os preços vão reagir de forma positiva. “Vão começar a refletir no preço a próxima fase do ciclo”, expõe.

Já perante a questão de qual o efeito mais relevante do QT, o aspeto técnico ou o ajuste de expetativas, Tomás Drumond, gestor de Carteiras na BPI Vida e Pensões é assertivo na sua resposta: “Uma combinação de ambos”. Refere-se e destaca especialmente o impacto na Europa, por via das diferenças ao nível de liquidez e alavancagem entre os diferentes países. “E é por isso que o BCE está a gerir o tema com cuidado, porque se fazem demasiado e demasiado rápido poderão ter um maior problema do que aquele  que tiveram em 2011 e 2012. Sei que não vimos de uma situação semelhante a então, mas mesmo assim…”, explica. 

Por outro lado, Tomás Drumond concorda com João Zorro ao afirmar que “se arrastarem o processo demasiado, correm o risco de atrasarem os efeitos positivos que o QT poderá ter. É por isso que implementaram a ferramenta de antifragmentação, para ajustar as expetativas”, conclui.