Gabriela Figueiredo Dias (IESBA): “O contexto regulatório, na próxima década, refletirá necessariamente a evolução regulatória internacional”

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Gabriela Figueiredo Dias. Créditos: Cedida (CMVM).

Nesta entrevista à FundsPeople, Gabriela Figueiredo Dias, presidente da International Ethics Standard Board for Accountants (IESBA) fala dos desafios da indústria, das grandes mudanças de regulação e da evolução do mercado nacional de gestão de ativos.

- Quais os principais desafios que entende que a gestão de ativos tem enfrentado na última década em Portugal?

Têm sido de natureza diversa os desafios que a indústria tem enfrentado, alguns deles resultantes do contexto, outros da própria dinâmica do setor.

A crise financeira colocou uma enorme pressão sobre a indústria, com um decréscimo significativo dos ativos sob gestão nos primeiros anos na última década e uma diminuição da dimensão do setor muito preocupante. Este foi sobretudo o resultado de dois fatores conjugados: o impacto da crise na capacidade de poupança a investimento, por um lado, e crise de confiança no mercado associada a alguns eventos financeiros relevantes, que importaram perdas significativas para os investidores. Estes eventos revelaram algumas fragilidades no setor, designadamente no que respeita à adoção de condutas adequadas de gestão, as quais, aliadas a algumas medidas prudenciais tomadas nessa fase contra os interesses dos titulares de instrumentos financeiros, geraram uma crise de confiança muito profunda nos investidores, individuais e institucionais, que abandonaram o mercado.

Mais recentemente, a pandemia colocou o setor sob uma grande pressão de liquidez, a qual, todavia, não chegou a materializar-se em qualquer evento de liquidez ou incapacidade de satisfação de pedidos de liquidez.

Importa ainda referir um esforço importante de adaptação do setor a alterações regulatórias importantes, designadamente as versões iniciais e revista da Diretiva AIFMD, que vieram alterar significativamente as exigências prudenciais colocadas aos gestores de fundos alternativos. Este desafio, no entanto, estendeu-se aos gestores de fundos UCITS por via de uma opção nacional de alinhamento por cima dos requisitos aplicáveis aos fundos UCITS e AIFMD, que se veio a revelar desproporcional.

Por último, o mercado de capitais tem sido, na última década, objeto de um progressivo e preocupante desinvestimento por parte dos decisores políticos, com consequências que sendo, na sua maioria, de médio e longo prazo, já se fazem neste momento sentir no funcionamento das empresas, mas que poderão repercutir-se na própria estabilidade financeira. É preciso não ignorar que o regime de requisitos de capital imposto (bem) aos bancos na sequência da crise financeira não só limitou a respetiva capacidade de financiamento da economia real, como é importante notar, todavia, a capacidade de adaptação e resiliência demonstrada pela indústria nacional de gestão de ativos e a crescente atratividade do setor para os investidores, não obstante todos estes desafios. Prova disso mesmo é o crescimento exponencial dos valores sob gestão nos últimos três anos e a retoma de rentabilidades interessantes mesmo em contexto de pandemia e de muito baixas taxas de juro. Tenho a noção de que esta retoma admirável por parte da gestão de ativos resultou de um conjunto de fatores, onde destacaria a progressiva melhor preparação dos gestores e a diversificação dos produtos disponibilizados. Não posso, no entanto, deixar de referir uma significativa modernização  da supervisão, que progrediu, neste período, para um modelo de maior exigência e de maior atenção aos aspetos relacionados com a adequação dos gestores e o cumprimento de regras prudenciais, mas também de maior tempestividade e proximidade, colocando-se ao serviço de um mercado mais dinâmico, vibrante e atrativo, capaz de se posicionar como uma verdadeira alternativa no financiamento das empresas e na oferta de opções interessantes para a poupança das famílias. 

De referir ainda que, durante os primeiros meses de pandemia e quanto Presidente do Investment Management Standing Committee pude observar um cenário de enorme pressão sobre os fundos de investimento a nível europeu, com especial expressão em problemas de liquidez e de valorização de ativos, que, todavia, enquanto Presidente da CMVM, tenho de referir não terem tido paralelo entre nós. Graças, por um lado, à melhor preparação das entidades gestoras, pelo reforço dos requisitos prudenciais e de adequação, e, por outro lado, a uma evolução muito grande da supervisão, que durante esse período praticou uma observação e acompanhamento ativo diário da liquidez das entidades gestoras por forma a assegurar uma rigorosa antecipação de quaisquer problemas mais graves. Provavelmente em virtude da conjugação de ambos os fatores, esses problemas, felizmente, não se materializaram, e o setor recuperou admiravelmente desse período, apresentando no segundo ano de pandemia valores dos montantes sob gestão dos quais já não havia memória e em alguns casos, inéditos.


- Quais lhe parecem ter sido as grandes mudanças de regulação que contribuíram para a evolução do mercado de gestão de ativos nacional, e onde é que estas ficaram aquém dos resultados esperados?

Já atrás referi as Diretivas AIFMD, na versão original e na versão revista, que vieram elevar de forma significativa os requisitos de preparação prudencial e de governação dos gestores, reforçando a respetiva resiliência. É impossível não destacar também o papel da União do Mercado de Capitais, que envolve desenvolvimentos relevantes em curso, como seja a revisão do regulamento dos Money Market Funds ou dos Euroepan Long Term Investment Funds (ELTIF).

Mas não posso deixar de referir, como evoluções críticas para o mercado de gestão de ativos nacional, dois importantes marcos.

Em primeiro lugar, o reforço do quadro regulatório relativo aos requisitos de adequação da gestão de topo nestas entidades, as chamadas regras de fit & proper, que progressivamente têm vindo a reforçar a boa governação, a cultura e a ética na gestão de ativos, preparando as entidades gestoras de uma forma completamente diferente para lidar com eventuais choques, mas sobretudo, para assegurar uma qualidade de gestão que reforça a confiança dos investidores.

Por outro lado, a transferência de competências de supervisão prudencial sobre as sociedades gestoras do Banco de Portugal para a CMVM, em janeiro de 2020, com ganhos de eficiência notória. De facto, com esta medida, as sociedades gestoras passaram a ter de lidar apenas com um único supervisor, que por sua vez assume a supervisão das sociedades gestoras e dos fundos por ele geridos, o que trouxe benefícios significativos para as entidades e permitiu  uma supervisão mais ágil e eficiente, sobretudo ao nível dos processos de autorização e registo, cuja eficiência constitui uma condição e um sinal de um mercado desenvolvido com um único supervisor.

É ainda de assinalar que a mesma legislação que promoveu a transferência de competências para a CMVM procedeu a uma simplificação assinalável da legislação aplicável a essas entidades gestoras, que estavam obrigadas a cumprir um conjunto de obrigações aplicáveis aos bancos.

Destacaria, ainda, o esforço feito por todos para que, apesar da dimensão das sociedades gestoras nacionais, quando comparadas com concorrentes de outros países, as práticas de governo interno, nomeadamente no que respeita à gestão de risco e de modo particular de liquidez, sejam aplicadas de forma consistente, de modo proporcional, mas tendo presente a proteção do investidor e a reputação do mercado nacional.


- Como vê, idealmente, o contexto regulatório e o mercado nacional de gestão de ativos evoluir na próxima década?

O contexto regulatório, na próxima década, refletirá necessariamente a evolução regulatória internacional, e em particular europeia, que de forma direta ou indireta irá afetar a gestão de ativos. Posso referir as alterações previstas para a AIFMD, ou a implementação do regime do Produto Individual de Reforma Pan-Europeu, que, dependendo do quadro regulatório que venha a ser definido no seu todo, designadamente no plano fiscal e da arquitetura de supervisão, poderá ser uma alternativa de grande sucesso e com um impacto muito positivo no incentivo à poupança e na diversificação das alternativas de aplicação da mesma.

Creio, no entanto, que o principal fator de transformação do contexto regulatório resultará, necessariamente, das inúmeras e muito complexas medidas regulatórias em curso em matéria de sustentabilidade. A tremenda aceleração da transição sustentável e a pressão para a criação urgente de padrões e normativos suscetíveis de assegurar informação credível, íntegra e comparável estão já a produzir um impacto significativo nas gestoras e nos fundos de investimento, pela necessidade de incorporarem, a uma velocidade ímpar, normativos complexos e totalmente inovadores nas respetivas práticas, modelos, gestão de risco e conformidade. 

Mas a sustentabilidade tem também um potencial enorme de modificação do próprio mercado, com a irrupção de fundos de investimento sustentáveis, com impactos muito positivos na transição verde, mas com riscos muito elevados também, designadamente decorrentes das denominadas práticas de greenwashing, que podem pura e simplesmente descredibilizar não só a gestão de ativos como o próprio movimento das finanças sustentáveis. Apesar da grande aceleração regulatória, está quase tudo por fazer: faltam dados e métricas credíveis e consistentes, a informação disponível está muito longe de ser satisfatória, de um modo geral, e menos ainda comparável, não está, por agora, sujeita a qualquer tipo de confirmação de qualidade (assurance) e aquela que é praticada numa base voluntária segue critérios e metodologias ad hoc e escassamente confirmáveis. Trata-se de uma área fascinante, de uma evolução urgente e imperativa e um projeto que nos envolve a todos, mas é preciso avançar com algum cuidado e sobretudo, com a consciência de que há uma longa jornada a fazer até chegarmos a um lugar de certezas e total confiança relativamente à narrativa verde das empresas.


- Alguma/Algumas medidas que gostasse de ter implementado durante as suas funções no Regulador, que de algum modo não chegou a concluir ou não teve tempo para tal? 

Claramente, a finalização do projeto de revisão do Regime Jurídico da Gestão de Ativos, hoje refletida no Regime da Gestão de Ativos, que ficou pronto e partilhado com o Governo antes do final do meu mandato, mas posteriormente submetido a consulta. Este era, no início do meu mandato como Presidente da CMVM, o principal desafio e projeto regulatório que me propus e que propus à CMVM. Por razões de diversa natureza, internas e externas, só no penúltimo ano do mandato foi possível desenvolver esse projeto e entregar a respetiva proposta aos decisores políticos. Considero, todavia, que deixei o trabalho feito, e que esta era uma das mais importantes medidas de dinamização do mercado e em particular, da gestão de ativos, algo que o regulador devia ao mercado. A poderosa simplificação promovida nesta proposta, que envolve uma alteração decisiva e profunda do modelo de supervisão, evoluindo para um modelo se supervisão sucessiva ou ex post, abandonando o modelo autorizativo e paternalista vigente, era algo que já no início do meu mandato considerava decisivo para a modernização de mercado e a eficiência da supervisão, respondendo à crescente maturidade dos operadores do mercado.

Gostaria de ter podido assistir ao seu nascimento como medida regulatória concretizada, e observar o impacto de uma alteração regulatória muitíssimo significativa, para a qual antecipava impactos muito positivos no mercado e um nivelamento da qualidade da regulação com os melhores exemplos e benchmarks europeus.