Implicações para os mercados europeus do Plano de Reconstrução aprovado pela UE

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mcg1711, Flickr, Creative Commons

O prémio Nobel, Milton Friedman disse uma vez que “só uma crise causa uma mudança real”. É irónico que mais de 40 anos depois da sua observação se possa aplicar à zona euro, um projeto que continua a evoluir e a transformar-se devido à crise. A pandemia pôs a descoberto que a união monetária, sem união fiscal e transferências, torna-se insustentável, até ao ponto de a falta de política fiscal e monetária coordenada ter ameaçado conter o desenvolvimento económico da Europa. Mas a resposta que a UE deu aos efeitos económicos do COVID-19 aponta agora para o reforço do projeto europeu após outra crise, a do Brexit, que pôs em causa a sua continuidade.

Os líderes europeus, perante a crise de saúde e a recessão mais profunda desde a II Guerra Mundial, criaram um plano de resgate que pode tornar-se transformador. O novo fundo de recuperação da EU de 750 milhões de euros é, em todos os sentidos, uma resposta potente ao choque pandémico, que combinado com o Fundo de Garantia para empresas da UE e o Mecanismo Europeu de Estabilidade, eleva o gasto coletivo da Europa aos 1,2 biliões de euros, 6,5% do seu PIB. Personifica a responsabilidade coletiva e, além disso, é ambiciosamente verde. Até um terço será canalizado para projetos que aceleram a transição para uma economia de carbono zero. Torna-se extremamente importante para a integração da UE, os seus mercados de ações, obrigações e o euro. Mas… que implicações pode ter a aprovação do projeto nos mercados europeus?

Implicações para as obrigações europeias

Segundo Sabrina Kaniche, economista da Pictet AM, as obrigações soberanas de maior risco podem tornar-se investimentos mais sólidos e as dos governos do sul da Europa investimentos básicos para um círculo mais amplo de investidores. “É preciso ter em conta que uma quarta parte das obrigações soberanas e supranacionais europeias têm classificação creditícia triplo A e o programa de recuperação pode aumentar este volume para 1,4 biliões de euros”, aponta. Com este novo sistema de mutualização da dívida, os spreads entre os países do núcleo europeu e a periferia poderão estreitar-se com o tempo.

Para Paul Brain, gestor da BNY Mellon IM, existem duas razões pelas quais isto pode acontecer. “A primeira é que, se a nova dívida contar com a garantia de todos os países, existirá um menor risco de crédito entre as obrigações soberanas. A segunda é que, se se fizer bom uso dos 750.000 milhões e se acabar por gerar crescimento económico, o risco de solvência da UE também será reduzido. Os rendimentos das obrigações dos países do núcleo poderão aumentar ligeiramente, já que agora terão mais dívida nas suas carteiras, mas, se efetivamente melhorarem as perspetivas económicas para a UE (e aumentarem as receitas fiscais), terão mais capacidade para repagar a dívida”.

Além disso, a nova dívida emitida pela Comissão em nome dos Estados membros deve consolidar o status de reserva internacional do euro, num momento em que o papel do dólar poderá ser questionado devido a desvios nas finanças públicas. “Isto será relevante para investidores de obrigações, já que num mundo de escassez de ativos seguros, oferecerá obrigações de elevada liquidez e alta classificação para atender à procura dos investidores. Esta emissão de um grande volume de dívida comum deve incentivar os investidores estrangeiros a considerar a UE como um todo e não como um quebra-cabeças para emissores individuais", asseguram na Amundi.

Impacto sobre o euro

O euro poderá ser outro dos grandes vencedores. “Uma Europa mais estável e um mercado de obrigações mais profundo vão trazer benefícios significativos para o euro, que desde a sua criação em 1999, viveu na sombra do dólar. Assim, a emissão de obrigações paneuropeias triplo A deve aumentar a atratividade da divisa europeia entre investidores internacionais e bancos centrais, que podem aumentar o seu peso nas carteiras internacionais”, afirma a economista da Pictet AM. Segundo o seu modelo, o câmbio do euro face ao dólar está 16% abaixo do que os fundamentais justificam e está subponderado nas reservas dos bancos centrais em relação ao seu peso económico (20% do total em comparação com 62% do dólar). “Com o fundo de recuperação pode ver-se mais de 2% anual face ao dólar nos próximos cinco anos”, assegura.

Impacto sobre as ações europeias

Em relação às ações europeias, a aprovação do Fundo de Recuperação foi, segundo indicam na Amundi, um dos cinco pilares que exigiram uma reavaliação das ações da UE em termos absolutos e relativos. "Vemos potencial positivo dos níveis atuais, especialmente se, como acreditamos, a recuperação cíclica continuar. Embora seja provável que as ações europeias beneficiem de maneira geral, isto é especialmente positivo para os valores financeiros e para os países periféricos", revelam.

As ações europeias negociaram nos últimos 20 anos com um grande desconto em relação ao dos Estados Unidos. Mesmo durante a crise financeira de 2008, o prémio de ações dos EUA ainda era 20% maior. Em parte, as avaliações das ações europeias previram durante a última década um risco de rutura da zona do euro. Mas agora o Fundo de Recuperação da UE pode reduzir essas disparidades. "Ao canalizar investimentos para setores voltados para a tecnologia verde, pode-se revitalizar empresas na nova economia da Europa", refere Kaniche.

Isto pode mudar para melhor a visão de muitos investidores no Velho Continente. Algumas casas já reconhecem que estão a começar a comprar ações europeias. Entre elas está a J.P.Morgan Asset Management para quem este plano implica uma forma distinta de olhar para a Europa. “Chegou a altura, o que significa que a região está disposta a operar como um bloco. Isto é um ponto de inflexão”, refere Lucía Gutiérrez-Mellado, diretora de Estratégia da empresa para Portugal e Espanha. Pela primeira vez, a responsabilidade é repartida por toda a UE. E isso é uma mudança que mexe com os mercados financeiros e com a imagem que a Europa projeta para o resto do mundo.