O que está a acontecer nos mercados: um guia para explicar ao cliente a correção atual

queda descida
Créditos: Andrei Castanha (Unsplash)

O pior início de ano para o S&P 500 em seis anos; o Nasdaq entrou em território de correção. “Foram poucas as vezes em que houve tanta tensão nos mercados nesta altura do ano”, reconhece John Plassard, da Mirabaud AM. Os números de Plassard pintam um quadro difícil para os mercados acionistas. Depois de ter caído pelo quarto dia consecutivo na sexta-feira, a bolsa sofreu a sua pior semana em quase dois anos. Até agora, em janeiro, o S&P 500 teve o seu pior arranque desde 2016.  As ações tecnológicas registaram um impacto particular, com o índice composto Nasdaq a cair mais de 10% desde o seu último máximo, uma queda que Wall Street descreve como uma correção. “Mas não é tudo”, recorda o especialista.  O mercado obrigacionista também está em desordem. 

Então, a que é que o mercado está a reagir? Rob Almeida, estratega de investimento e gestor da MFS IM, cita duas coisas: taxas mais elevadas e abrandamento do crescimento.  “O aumento das taxas esvazia as avaliações de todos os ativos de risco”, explica. Ao mesmo tempo, o abrandamento do crescimento significa cash flows inferiores ao esperado (lucros), que correm o risco de ser dececionantes à medida que os custos (como mão-de-obra, energia, tarifas) aumentam.

Estamos perante um golpe de realidade.  “Os mercados de ações e obrigações estão a ser perturbados pela sua letargia de baixa volatilidade pelos bancos centrais que ameaçam eliminar a política monetária ultra-flexível”, descreve Paul Brain, gestor da Newton (BNY Mellon IM).  “Eventualmente, a ameaça de custos de empréstimos mais elevados e o impacto a longo prazo nos ganhos devido aos custos mais elevados causados pela inflação está a obrigar-nos a repensar as perspetivas de algumas empresas que negoceiam com múltiplos elevados” considera.

Sebastien Galy, responsável de Estratégia Macroeconómica da Nordea AM, também concorda em citar a Fed como o núcleo dessa volatilidade. Em particular devido à intensidade e ao calendário da redução do balanço do banco central. E acrescenta outro problema crescente: as probabilidades de uma guerra na Ucrânia que possa conflagrar tensões na região.  “O sinal de que o Reino Unido e os EUA estão a retirar o seu pessoal da embaixada é visto com alguma cautela”, comenta.

A isto acrescenta-se, além disso, que arrastamos os fantasmas do passado. A China foi um foco de preocupação no ano passado e em 2022 a situação ainda está por avaliar. “O poder económico da China é tão grande que até as menores oscilações na sua trajetória de crescimento afetam outros países da Ásia”, sublinha Peter van der Welle, estratega da Robeco.

É a geopolítica o primeiro cisne negro de 2022?

Podemos estar perante o nosso primeiro cisne negro de 2022, de facto. Axel Botte, estratega global da Ostrum AM (Natixis IM), fala-nos da escada rápida do conflito entre Rússia e Ucrânia. “A situação na Ucrânia piora de hora para hora, e pesa sobre os mercados de ações do Báltico e Finlândia pelos relatórios recebidos sobre o envio de tropas para as bases da NATO aí existentes. Por sua vez, a Alemanha uniu-se com os EUA avisando a Rússia que imporia sanções no caso desta invadir a Ucrânia”, resume.

“Se os EUA avançarem com o aumento dos fornecimentos de gás natural à Europa, os interesses dos países da NATO alinhar-se-ão para uma resposta poderosa. A UE acaba de ampliar o financiamento à Ucrânia, outro sinal de uma oposição coordenada mais forte à Rússia”, interpreta.

Nestas circunstâncias, é improvável que os preços do gás a curto prazo recuem definitivamente, veem na EdRAM. E se as coisas ficarem feias, Chris Iggo, diretor de Investimentos de Core Investments da AXA IM, antecipa uma fuga para ativos refúgio. Na sua opinião, os ativos seguros comportar-se-iam muito bem, as ações afundar-se-iam devido aos riscos para o crescimento económico e o dólar dispararia face ao euro, porque uma guerra na Ucrânia seria um problema prático muito imediato para a Europa (refugiados, preços de gás natural ainda mais altos, a necessidade de uma resposta unida das nações da UE). “Mas as coisas ficariam complicadas muito rapidamente em termos da resposta do Ocidente, tendo em conta o quão brutal se tornaria o conflito se a Bielorrússia entrasse na contenda, e tendo em conta que sanções ou ações financeiras e económicas tomariam ambos”, destaca.

Porque é que a Fed preocupa tanto

Uma subida de taxas em teoria não deveria ser motivo de preocupação. Ao fim e ao cabo, é um sinal de que a economia vai pelo bom caminho. O problema é quando se aplica na prática.

Sobre os mercados voa o fantasma da última vez que a Fed subiu as taxas. Em 2018 Jerome Powell subiu as taxas e reduziu os balanços. “O resultado foi um ano doloroso para todas as classes de ativos. As yields das obrigações subiram e os preços das ações caíram. O único lugar para esconder-se nesse ano foi o cash”, lembra James Athey, diretor de investimentos da abrdn.

Mas o que mais preocupa Athey é que este ano pode ser ainda mais perturbador. É que agora partimos de valorizações mais exigentes e com mudanças na política fiscal. “E o que é mais importante: a inflação está a avançar a um ritmo que não tínhamos ainda experienciado desde final dos anos oitenta, princípios dos 90”, acrescenta.

No final do ano passado muitos temiam que a Fed pudesse cometer um erro de política monetária. Há quem acredite que já falhou. “As pessoas perguntam-me se a Fed cometerá um erro. Já o cometeu, pois temos uma inflação de 7%. O que poderá ser um erro de política maior do que não responder a isso?”, ressalta Richard Bernstein, CEO da Richard Bernstein Advisors (RBA). E Luca Paolini, estratega chefe da Pictet AM, coincide por completo com este sentimento. Para ele, o maior risco atual é uma inflação devastadora que afete os gastos do consumidor quando o crescimento do emprego alcança máximos. “O caso é que a inflação é um imposto. O pior. O pecado original dos bancos centrais é ver a inflação nos preços dos ativos como parte da solução, através do efeito riqueza e não como inflação”, diz.