O que se passa com a liquidez dos ETF de obrigações? Pontos-chave para entender o que se está a passar

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A crise originada pela propagação do vírus COVID-19 está a provocar um aumento de volatilidade nos mercados de obrigações que, entre outras consequências, está a pôr à prova a resistência, em termos de liquidez, dos ETF desta classe de ativos. Nestes últimos dias, alguns produtos maiores têm estado a operar com um desconto de até 6% face ao seu Net Asset Value (NAV). Dito de outra forma: o preço a que cotam é um, mas o preço ao que se poderia vender o respetivo cabaz de obrigações é outro. Tal como assegura Reggie Browne,  um dos grandes gurus dos fundos cotados que trabalhou como market maker quando foram lançados estes produtos, a razão é muito simples: a menor liquidez no mercado em geral. 

“Quando os fundos de fixed income negoceiam com 4% ou 5% de desconto é porque os preços a que cotam as obrigações subjacentes são inferiores do que aqueles aos que o mercado regista. Os ETF mostram preços em tempo real, onde o respetivo cabaz de obrigações está efetivamente a negociar. Nada é grátis”, explica o especialista num artigo publicado por Lara Crigger em ETF.com. E aqui é onde é necessário voltar a insistir no trabalho pedagógico que têm vindo a realizar a grande maioria dos provedores destes produtos ao longo dos últimos anos. 

“Os ETF estão a cotar com desconto em relação ao NAV. Em obrigações, muitas cotam com pouca frequência e em poucas quantidades. Em períodos de volatilidade e de ampliação de spreads, o que reflete o ETF é o preço real ao qual se pode comprar e comprometer capital”, assinala César Muro, especialista em gestão passiva da DWS. A ideia fundamental é que a liquidez de um ETF de obrigações é, no mínimo, idêntica à do mercado subjacente que replica. No entanto, esta costuma ser superior à da aquisição em direto do cabaz de obrigações replicado, porque o investidor não tem que aceder ao mercado subjacente (comprar as obrigações), mas sim acede ao mesmo através das próprias ações do ETF. Neste momento, tentar vender obrigações individuais sem ter que assumir um desconto relevante por via da falta de liquidez é complicado e, por isso, o preço do ETF está a refletir qual é o verdadeiro preço do mercado. 

Há que estar consciente da estrutura singular de um ETF de fixed income, que converte uma carteira diversificada de obrigações numa única ação comercializável. Proporciona, assim, duas fontes de liquidez ao investidor: o mercado primário, ao qual se pode aceder através de um participante autorizado; e o secundário, ao qual se pode aceder diretamente. Estas duas fontes definem o perfil de liquidez geral do fundo. Princípios básicos de um ETF de obrigações para compreender a sua liquidez. Um ETF é uma carteira de valores individuais, ou seja, ações ou obrigações, que forma um só fundo. As ações desse fundo podem ser negociadas em bolsa (o tal mercado secundário). Normalmente, o investidor compra ou vende as participações dos ETF em mercado secundário. No entanto, se o volume da ordem de compra ou venda é demasiado grande para ser executado em bolsa, o investidor pode recorrer a um market maker ou criador de mercado para operar no mercado primário do ETF. Nestes momentos, a maioria das operações estão a ser concentradas no secundário, ainda que também aconteçam no primário. 

O tamanho da ordem do investidor e os volumes de operações do ETF determinarão se se pode negociar no mercado secundário. Se o investidor somente pudesse operar neste mercado, uma ordem de grande dimensão poderia demorar a executar-se, pelo que ficaria exposto ao risco de mercado durante mais tempo. Para contrariar este possível problema, os emitentes dos ETF associam-se aos chamados participantes autorizados (AP, authorized participants) que, através do mercado primário, garantem que um investidor possa comprar ou vender as suas participações em diferentes contextos de mercado. 

O papel destes market makers costuma ser exercido pelos bancos de investimento ou empresas especializadas. Os AP podem criar novas participações para o ETF quando existe uma grande ordem de compra, e liquidar as existentes no caso de uma ordem de venda significativa. Este mecanismo intradiário de criação/liquidação significa que os ETF podem assumir grandes ordens de compra e venda, independentemente da liquidez que ofereça o mercado secundário do ETF. Isto facilita que as ordens se executem de forma instantânea. 

Já o mercado secundário é, simplesmente, a bolsa de valores, onde negoceiam as ações do ETF. Pode avaliar-se a liquidez de um ETF no mercado secundário observando o seu volume médio de operações diárias e o spread bid-ask (a diferença entre o melhor preço de compra e o melhor preço de venda), assim como os prémios e os descontos sobre o valor da unidade de participação (uma ação do ETF neste caso). Mas sé se pode avaliar com precisão a liquidez do ETF se se tiver em consideração a liquidez do mercado primário do mesmo. 

“As preocupações com o efeito potencial dos ETF de obrigações nos seus mercados subjacentes concentram-se num cenário de liquidação em massa. Nesse caso, a oferta de ações de ETF no mercado secundário excederia a procura (haveria mais vendedores do que compradores). Isso levaria os preços dos ETF a ficarem abaixo do valor do património líquido (seriam negociados com desconto). Nesse caso, os provedores mais prováveis de liquidez (compradores) seriam market makers”, conta Ben Johnson, CFA, diretor global de investigação de ETF na Morningstar. Em última análise, os descontos aumentam ao ponto de se tornar rentável para os market makers intervir e comprar ações de ETF "baratas", com a perspetiva de vender posteriormente os títulos subjacentes "caros". “Ao explorar essa oportunidade de arbitragem, os market makers reduzem a oferta de ações de ETF no mercado secundário, o equilíbrio entre oferta e procura será restaurado e os descontos por colapsar”, explica.

O cenário descrito acima não é hipotético. Esse processo está em funcionamento desde o lançamento do primeiro ETF, o SPDR S&P 500 ETF (SPY), em 1993. Nas palavras do profissional, “os ETF de obrigações, embora ainda sejam relativamente recentes, foram testados em tempo real. Funcionaram muito bem durante os piores dias da crise financeira. De facto, em certos momentos, eram uma das únicas fontes remotamente confiáveis de informações de liquidez e preços”. Este padrão foi repetido posteriormente, conforme evidenciado pelos picos nas negociações de ETF de obrigações que coincidiram com picos intermitentes de volatilidade no mercado de títulosde dívida - mais notavelmente, a crise de 2013 e o sell-off do high-yield em 2015.

 

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A liquidez tem um preço

“Os ETF de obrigações servem para organizar a liquidez e funcionaram bem em tempos de crise, mas não mudam nem vão mudar o facto de a liquidez ter um custo. No caso dos ETF de obrigações, esse custo assume a forma de spreads de compra e venda, impacto no mercado (nos preços dos ETF) e prémios e descontos no valor do ativo líquido”, explica o profissional da Morningstar. O custo da liquidez pode ser volátil e certamente aumentará perante uma fuga em massa dos mercados de obrigações, o que não é exclusivo dos ETF. O que é único é o nível de transparência que fornecem (na forma de preços intradiários amplamente disponíveis) e a camada adicional de liquidez que adicionaram ao mercado na forma de negociação no mercado secundário. Para Ben Johnson, CFA , “o desenvolvimento de um menu completo de ofertas de ETF de obrigações deve ser bem-visto pelos investidores, pois oferece uma ampla variedade de ferramentas de baixo custo para obter acesso a praticamente todos os cantos deste mercado e criou uma nova via de liquidez e maior transparência de preços - que deve beneficiar todos os investidores de obrigações, independentemente de usarem ETF ou não”.