A China e a sua dívida - uma relação posta à prova

Yannik
Yannik Ehlert. Créditos: Cedida (ITIC)

TRIBUNA de Yannik Ehlert, membro de Asset Management do ITIC – ISCTE Trading & Investment Club.

A China tem registado um acelerado crescimento económico ao longo das últimas décadas. Nas décadas iniciais do processo de abertura e reforma, iniciado em 1978, foram batidos recordes, com expansões na ordem dos dois dígitos, sendo frequente que as previsões de crescimento do PIB fossem plenamente atingidas ou mesmo excedidas. Mesmo no quadro de uma desaceleração do crescimento económico mundial, a China continua a crescer a um ritmo com o qual outros países com economias de tamanhos semelhantes só podem sonhar. É lógico que tal crescimento não acontece sem o recurso óbvio ao endividamento. No entanto, no caso da China, a relação entre crescimento e endividamento é cada vez mais incerta. A pandemia, como em tantas outras situações, funcionou como um catalisador e trouxe à luz os problemas que até então passavam despercebidos.

O mercado imobiliário

O grande motor do crescimento chinês, nas últimas décadas, tem sido a indústria da construção e imobiliário. As cidades têm crescido a um ritmo acelerado, em linha com os planos governamentais de urbanização da sociedade chinesa e da transferência da população das zonas rurais para as zonas urbanas. Inicialmente, todos os stakeholders foram beneficiados: empresas, famílias, investidores, governos locais e provinciais. No fundo, as cidades e o país. No entanto, o mercado imobiliário chinês está numa fase de abrandamento que é provocada pelas restrições ao aumento dos preços dos imóveis, à luta contra a especulação imobiliária e aos limites governamentais à contração de dívida, juntamente com o excesso de oferta de imobiliário. De acordo com as estimativas dos especialistas, existem cerca de 30 mil espaços com a capacidade para albergar até 80 milhões de pessoas, que se encontram vazios. Se os apartamentos não puderem ser vendidos, os promotores imobiliários terão de ficar com os apartamentos pré-financiados. O caso da Evergrande é o mais proeminente, mas não é de modo algum o único. O Estado chinês interveio aqui, como em muitas outras situações, e restringiu a dívida de tais empresas, o que serviu para abrandar ainda mais o setor. Atualmente, os preços dos imóveis estão em queda, com a Evergrande e outras empresas do setor a falharem os pagamentos dos juros sobre as suas obrigações e a ficar com inúmeros apartamentos on hold. Só os desenvolvimentos nos próximos meses mostrarão o quanto a crise no setor imobiliário está, de facto, a afetar toda a economia.

Acresce ainda à preocupação a exposição de diferentes fundos às suas obrigações. Alguns exemplos são o Ashmore Sicav Emerging Markets Short Duration, da Ashmore, o Fidelity TWI Emerging Markets Corporate Debt, sob gestão da Fidelity, e o UPAMC Emerging Markets Corporate Bond, da Uni-President AM. Todos estes apresentavam recentemente pesos na carteira superiores a 2%, o que poderia representar um risco significativo para os investidores. Resta saber também que outras empresas semelhantes à Evergrande estarão numa situação de falta de solvência parecida que, em última análise, poderá ditar uma nova abordagem ao mercado de obrigações chinês e quiçá a outros países asiáticos. Um cenário de default da Evergrande tem o potencial de criar uma mudança de paradigma no investimento na China.

A população chinesa

Além das empresas do setor imobiliário, existem outros entraves ao crescimento, sendo uma das causas o endividamento excessivo das famílias. Se compararmos o endividamento de diferentes populações, as da UE e dos EUA permaneceram constantes em 150% do PIB nos últimos 15 anos, enquanto a da população chinesa aumentou de 120% para 210% do PIB durante o mesmo período. Recentemente, o endividamento das famílias registou uma nova subida dado que, ao contrário da UE e dos EUA, as taxas de juro na China não baixaram durante a pandemia: uma medida que veio da vontade governamental de controlar a especulação, mas que, no entanto, só piorou o nível de endividamento dos particulares. Outras medidas usadas para combater este flagelo incluem a limitação do número de imóveis por família ou o pagamento de impostos pela alienação de imóveis. Embora a China esteja interessada em reduzir o endividamento das famílias, resta saber se um passo verdadeiramente consequencial será dado em breve.

China como o maior doador

A China está a lutar contra a dívida não só a nível interno, mas também a nível externo, como credor. Durante anos, a China tem financiado países emergentes e em desenvolvimento, quer diretamente através de empréstimos, quer através da construção de infraestruturas necessárias. Com isso, tornou-se o maior financiador do mundo, algo que não é feito nem por caridade, nem por interesses puramente financeiros, mas pelo objetivo de exercer poder geopolítico. Devido à estagnação económica causada pela pandemia, os países em desenvolvimento foram atingidos de forma particularmente dura e as despesas adicionais de saúde têm levado muitos destes a ficar à beira da insolvência. Sem uma reestruturação da dívida através de adiamento, extensão ou anulação, estes países não encontrarão uma saída para esta crise. Os esquemas de reestruturação da dívida serão feitos à custa dos credores chineses. Não se sabe ao certo qual é o volume da dívida pendente destes países, dado que as informações exatas não são publicadas. É consenso entre os peritos que existam cerca de 30 países que têm dívidas para com a China: resta saber quantos desses irão conseguir de facto cumprir com as suas obrigações.

É necessária uma reviravolta

Sem o uso de dívida particular e soberana, a China não estaria nem economicamente, nem politicamente na posição em que se encontra hoje. Décadas de crescimento económico levaram o país do estatuto de mercado emergente à maior potência global, mas a sua relação com a dívida poderá ser diferente no futuro. O crescimento descontrolado tem os seus limites e estes parecem ter sido alcançados, se não já ultrapassados, em várias áreas. Cabe ao governo chinês controlar a relação do país com a dívida. Mesmo que tais medidas já estejam a ser tomadas, podem chegar demasiado tarde. A instabilidade atual deve ser acompanhada de perto, não só pelos efeitos na China, como pelas possíveis consequências no resto do mundo. Como resultado final, a prévia relação despreocupada da China com a sua dívida poderá ser alvo de reavaliação, e, sem grandes mudanças e cortes, esta poderá cair por terra.