A inconstitucionalidade do imposto do selo retroativo nas comissões dos fundos de pensões

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Créditos: Bill Oxford (Unsplash)

(Artigo da autoria de Rogério Fernandes Ferreira, sócio fundador; Marta Machado de Almeida, sócia; Rita Arcanjo Medalho, advogada associada;  Soraia João Silva, advogada associada; José Oliveira Marcelino, associado; e Inês Tomé Carvalho, associada; da RFF & Associados.)

No passado dia 25 de janeiro, o Tribunal Constitucional, através do Acórdão n.º 751/2020, declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma introduzida, no Código do Imposto do Selo, pela Lei do Orçamento do Estado para 2016, que determina, com fundamento na natureza interpretativa que lhe foi conferida, a inaplicabilidade da isenção de Imposto do Selo às comissões de gestão cobradas pelas sociedades gestoras aos fundos de pensões por elas geridos, nos períodos de tributação anteriores a 2016.

Rogério Fernandes Ferreira

A Lei do Orçamento do Estado para 2016 atribuiu caráter interpretativo ao disposto no Código do Imposto do Selo, determinando, assim, a inaplicabilidade, por referência aos períodos de tributação anteriores a 2016, da isenção deste imposto sobre as comissões de gestão cobradas pelas sociedades gestoras aos fundos de pensões por elas geridos.

A norma em causa, que afastava a isenção do Imposto do Selo sobre as comissões de gestão cobradas pelas sociedades gestoras aos fundos de pensões por elas geridos, nos períodos anteriores a 2016, já havia sido apreciada, em 2017, pelo Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), a pedido de uma sociedade gestora de fundos de pensões, tendo, nessa instância sido determinada a anulação da liquidação de Imposto do Selo, objeto desse pedido e que havia sido emitida pela Administração tributária, no seguimento de um procedimento de inspeção tributária.

Marta Machado de Almeida

A declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, ora proferida, surge no âmbito de um processo de fiscalização sucessiva da constitucionalidade, desencadeado pelo Ministério Público, na sequência da existência de três decisões de inconstitucionalidade proferidas, pelo Tribunal Constitucional, em três processos anteriores.

Com efeito, nos termos da Constituição da República Portuguesa, o Tribunal Constitucional aprecia e declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade de qualquer norma, desde que a mesma tenha sido por ele julgada inconstitucional em três casos concretos, cabendo a iniciativa a qualquer dos juízes do Tribunal ou ao Ministério Público.

O teor do Acórdão

A Lei do Orçamento do Estado para 2016 alterou o Código do Imposto do Selo, no que respeita às isenções aplicáveis em sede deste imposto, a qual, e com relevância para o presente caso, significou a exclusão, até então existente, da isenção aplicável às comissões de gestão cobradas pelas sociedades gestoras aos fundos de pensões por elas geridos.

Rita Arcanjo Medalho

Adicionalmente, a mesma Lei do Orçamento do Estado para 2016 determinou que a redação dada ao Código do Imposto do Selo tinha a natureza de “caráter interpretativo”.

Ora, no Acórdão em análise, a questão da inconstitucionalidade foi suscitada, precisamente, em relação a este caráter interpretativo, na medida em que determinava a aplicação, retroativa, da nova redação dada ao Código do Imposto do Selo.

Na prática, tal significa não estarem abrangidas pela isenção do Imposto do Selo as comissões de gestão cobradas pelas sociedades gestoras aos fundos de pensões por elas geridos nos anos anteriores a 2016 (i.e., com efeitos retroativos).

Em concreto, questionou-se a compatibilidade desta interpretação com a proibição de criação de impostos com natureza retroativa, consagrada na Constituição da República Portuguesa.

Do teor do Acórdão resulta que o Tribunal salientou não estar em causa a constitucionalidade da norma por referência aos anos de 2016 e seguintes, mas sim do entendimento legalmente estabelecido de que a mesma norma produziria efeitos, também, para os anos anteriores a 2016, por força do referido caráter interpretativo.

De acordo com o entendimento do Tribunal Constitucional, e por força da Constituição da República Portuguesa, ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que tenham natureza retroativa, o que significa que o legislador não pode criar impostos com tal natureza ou introduzir, nos impostos existentes, modificações que, com efeitos retroativos, os agravem.

Soraia João Silva

Fundamentando a decisão, o Tribunal Constitucional referiu que a consagração do princípio geral de proibição da retroatividade da lei fiscal significa que um determinado juízo de inconstitucionalidade decorrerá, apenas, da mera análise dos dados normativos, não dependendo, em nenhum momento, da averiguação de quaisquer elementos circunstanciais.

A respeito do caso concreto, referiu ainda o Tribunal que o caráter interpretativo atribuído à norma da Lei do Orçamento do Estado para 2016 implicava a sujeição a imposto de garantias prestadas e operações financeiras realizadas antes de 2016, ainda que as mesmas tivessem sido consideradas isentas nos termos de lei vigente à data da sua concretização.

Neste sentido, o Tribunal Constitucional reafirmou, de acordo com aquele que vem sendo o seu entendimento, que muito embora os cidadãos destinatários das leis não devam ter qualquer expectativa de que estas sejam, ou possam vir a ser, interpretadas no sentido que lhes é mais favorável, têm, ainda assim, uma expectativa legítima, na qualidade de destinatários da lei, de formarem uma convicção sobre o direito nela vertido e de agirem com base nessa convicção jurídica.

José Oliveira Marcelino

Assim, estando em causa a interpretação legal de uma norma fiscal, concluiu o Tribunal que não podia a mesma deixar de estar abrangida pela proibição da retroatividade consagrada na Constituição da República Portuguesa.

Em face do exposto, o Tribunal decidiu declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação da proibição de criação de impostos com natureza retroativa, da norma da Lei do Orçamento do Estado para 2016, na parte em que, ao atribuir caráter interpretativo ao referido artigo do Código do Imposto do Selo, entretanto aditado a este Código, determinava a aplicabilidade, nos anos fiscais anteriores a 2016, da norma do mesmo Código do Imposto do Selo e segundo a qual a isenção não abrange as comissões de gestão cobradas pelas sociedades gestoras aos fundos de pensões por elas geridos.

Conclusão

Inês Tomé Carvalho

A declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, através deste Acórdão, vem reiterar o princípio geral de proibição da retroatividade da lei fiscal, tentando, de certa forma, e por esta via, travar as cada vez mais recorrentes normas, ditas interpretativas mas efetivamente inovadoras, contidas nas Leis dos Orçamentos do Estado e até, muitas das vezes, em legislação avulsa.

Assim, identificamos um fundamento legal que poderá permitir agir e reagir contra as ações que, neste âmbito, forem ou venham a ser adotadas pela Administração tributária em sentido contrário e que o legislador podia, efetivamente, desde logo ter evitado.