A queda de Ícaro…

Jorge Silveira Botelho BBVA AM
Jorge Silveira Botelho. Créditos: Vítor Duarte

TRIBUNA de Jorge Silveira Botelho, da BBVA AM Portugal.

Neste último ano e meio fomos assolados por um surto inflacionista que parece ter surgido do nada. No entanto, já se percebeu como a sustentabilidade acabou por explicar grande parte deste surto inflacionista, onde a emergência da transição energética provocou fortes distorções no mercado de energia, acabando por ser o principal fator que contribuiu para a subida generalizada dos preços dos bens e serviços. A pandemia e a guerra foram dois fatores que aceleraram múltiplos efeitos inflacionistas na orla ESG, agravando as distorções no mercado energético, compelindo os Estados a corrigir as desigualdades sociais e obrigando as empresas a um maior controlo efetivo de governação das suas cadeias de abastecimento.

Depois, um manuseamento errático da política monetária, onde a gestão abrupta de enormes estímulos monetários e a falta de discernimento para os gradualmente remover, provocou no curto prazo, grandes distorções, ao estimular artificialmente uma procura numa altura onde não havia simplesmente capacidade de gerar oferta... (vide: Sustentabilidade & Bom Senso).

EUA: desfasamento entre a oferta monetária e a inflação

Fonte: Bloomberg

Infelizmente a volatilidade da política monetária tornou-se ainda maior que a volatilidade dos próprios mercados, e devemos estar preparados para mais uma inversão de sentido em 2023, porque depois do grito da inflação vamos de novo poder escutar o murmúrio estrutural da desinflação:

Em primeiro lugar, porque na maior economia do mundo, os três grandes motores do consumo privado americano estão a abrandar rapidamente. Na realidade, as poupanças constituídas durante a pandemia já se evaporaram, a capacidade de alimentar o consumo com o refinanciamento da hipoteca simplesmente desvaneceu-se e as recentes dinâmicas do emprego e dos negativos salários reais começam a colocar novos desafios aos consumidores.

EUA: Motores do consumo privado

Fonte: Bloomberg

Em segundo lugar, as dinâmicas da inflação alimentar têm características mais estruturais e mais complexas do que a inflação dos outros bens e serviços, o que dado seu carácter insubstituível, condicionará ainda mais a capacidade de subida dos preços dos outros bens e serviços. De facto, a subida bem acima da inflação geral e core, dos preços dos bens alimentares, vai reduzir materialmente a capacidade de poder de compra de outros bens e serviços, em algumas franjas sociais.

EUA: Inflação alimentar versus inflação core

Fonte: Bloomberg

Em terceiro lugar, com o normalizar das cadeias de produção e distribuição, vamo-nos confrontar com o reverso da situação anterior, ou seja, vamos ter um desajuste entre um crescimento de oferta face a uma contração da procura, visível, na redução dos tempos de entrega e na subida de inventários.

EUA: Cadeias de logística…

Fonte: Bloomberg

Em quarto lugar, contrariamente ao que se diz, a China continua a ser uma força desinflacionista global, onde as dinâmicas próprias do seu regime e da sua economia, vão continuar a manter extremamente competitiva a sua economia, continuando a pressionar os preços internacionais. Não é por acaso que a inflação homóloga na China se encontra a dos 2,3%, enquanto a inflação mundial está ainda acima de 10%.

China continua a ser uma força desinflacionista

Fonte: Bloomberg

Em quinto lugar, se a (des)globalização é um fenómeno tendencialmente inflacionista, este deve ser devidamente enquadrado. Pontualmente, vão existir alguns fenómenos de controlo de cadeias de abastecimento, por uma questão de melhor governação. No entanto, não se exagere a sua dimensão, num mundo onde são cada vez mais assinaláveis as interdependência económicas e sociais.

Fonte: Bloomberg

Em sexto e último lugar, se a questão da sustentabilidade criou conjunturalmente alguns constrangimentos no curto prazo, no médio e no longo prazo, vai gerar algo muito mais importante: a efetiva transição energética, a digitalização da economia e as alterações dos hábitos de consumo.

A transição energética é uma realidade cada vez mais verosímil, e a seu tempo, o custo efetivo de energia de longo prazo vai-se reduzir. Tanto mais, porque após a amortização dos custos dos projetos ao nível das fontes renováveis, o custo marginal de produzir energia tenderá ase reduzir significativamente.

A digitalização da economia associada às novas tecnologias, como a inteligência artificial, também é um fator chave para a redução das emissões de carbono. Mas debaixo desta revolução digital, vão-se alterar os modelos de negócio, uma vez que se torna exequível uma mais eficiente substituição do fator trabalho por fator capital em inúmeros setores de atividade, que vão da indústria aos serviços. Não subestimando, também, a relevância que pode vir a ter controversa infraestrutura digital e a sua moeda, na medida em que, a introdução de uma moeda digital centralizada vai ter um impacto tremendo na formação dos preços relativos e imprimir uma maior transparência da informação. Esta realidade, vai seguramente consumar-se nesta década, forçando a aproximação da economia financeira à economia real, o que seguramente terá implicações desinflacionistas.

Por fim, temos as implicações sociais das alterações do mercado de trabalho e as preferências mais sustentáveis dos consumidores (muitas das quais ainda estão por ocorrer), vão ter fortes implicações nos hábitos de consumo, ao nível da frequência do consumo de bens, ao nível da relação da posse versus usufruto e na revolução inerente que vai ocorrer na explosão da economia circular.

Moral da história: tudo o que ocorre fruto de situações conjunturais ou pela criação de fenómenos artificiais é efémero, porque não tem condições para subsistir no tempo. Deste modo, ao longo dos próximos meses vamos poder constatar o derreter das asas inflacionistas, ao mesmo tempo que a Fed vai proclamar orgulhosamente a sua vitória de Pirro. Tal como Ícaro, algures no mar Egeu, vamos voltar de novo a nos encontrar perdidos no mar.