A tributação de dividendos pagos a organismos de investimento coletivo não residentes

Rogério Fernandes Ferreira, Pedro José Santos e Vânia Codeço. RFF Advogados
Rogério Fernandes Ferreira, Pedro José Santos e Vânia Codeço. Créditos: Cedida (RFF Advogados)

TRIBUNA de Rogério Fernandes Ferreira, sócio fundador, Pedro José Santos, advogado sénior regional, e Vânia Codeço, advogada sénior coordenadora, da RFF Advogados.

O Tribunal Justiça da União Europeia (TJUE) proferiu Acórdão no passado dia 17 de março de 2022, no âmbito do Processo C-545/19, sobre discriminação na tributação, por retenção na fonte no pagamento de dividendos, de Organismos de Investimento Coletivos não residentes em Portugal. A questão não é nova, mas este Acórdão veio clarificar e conferir o suporte jurisprudencial do TJUE ao entendimento a adotar, tendo já sido proferidas, pelo CAAD, diversas decisões arbitrais favoráveis aos contribuintes.

A origem deste litígio remonta à alteração, operada pelo Decreto-Lei n.º 7/2015, de 13 de janeiro, do regime de tributação dos Organismos de Investimento Coletivos (OIC), ou seja, fundos de investimento ou sociedades de investimento. Tal regime isenta os OIC de tributação sobre dividendos, juros, rendas e mais-valias, considerando que a tributação de tais rendimentos, ocorre, em princípio, na esfera dos titulares ou acionistas quando lhes são distribuídos os resultados do fundo. Todavia, o regime de isenção em vigor estabelece que só é aplicável a OIC que se constituem e operem de acordo com a legislação portuguesa, ou seja, na letra de lei, tal regime não seria aplicável a OIC que se constitui e operem de acordo com a legislação de outro Estado, designadamente membro da União Europeia.

O teor do acórdão do tribunal de justiça da UE

No Acórdão em apreço, proferido no Processo C-545/19, estava em causa um OIC constituído ao abrigo da legislação alemã e com sede na Alemanha (AllianzGI‑Fonds AEVN), doravante OIC estrangeiro, o qual, nos anos de 2015 e de 2016, era detentor de participações sociais em diversas sociedades residentes em Portugal. Os dividendos recebidos a este título durante esses dois anos foram sujeitos, em conformidade com o artigo 87.°, n.º 4, alínea c), do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, a tributação por retenção na fonte, à taxa liberatória de 25 %.

Em 29 de dezembro de 2017, o OIC estrangeiro apresentou, perante a Autoridade Tributária e Aduaneira, uma Reclamação Graciosa dos atos de retenção na fonte do IRC relativo aos anos de 2015 e 2016, onde requereu a anulação desses atos por violação do direito da União, bem como o reconhecimento do seu direito à restituição do imposto indevidamente suportado em Portugal. Essa Reclamação Graciosa foi indeferida pela Administração tributária e deu origem a um pedido de pronúncia arbitral, apresentado pelo OIC junto do Tribunal Arbitral Tributário do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD).

O OIC estrangeiro alegou, fundamentalmente, que, nos anos de 2015 e 2016, os OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação portuguesa estavam sujeitos a um regime fiscal mais favorável do que aquele a que o OIC estrangeiro foi sujeito em Portugal, na medida em que, relativamente aos dividendos pagos por sociedades estabelecidas em Portugal, esses organismos estavam isentos de IRC, ao abrigo do artigo 22.°, n.º 3, do Estatuto do Benefícios Fiscais (EBF). O OIC estrangeiro considera que, sendo tributado à taxa de 25 % sobre os dividendos que lhe são pagos por sociedades estabelecidas em Portugal, é objeto de um tratamento discriminatório proibido pelo artigo 18.° do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), bem como, de uma restrição à liberdade de circulação de capitais proibida pelo artigo 63.° TFUE.

A Autoridade Tributária e Aduaneira sustentou, por sua vez, que o regime fiscal português aplicável aos OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação nacional e o regime aplicável aos OIC constituídos e estabelecidos na Alemanha não são, por natureza, comparáveis, uma vez que o primeiro destes regimes também não exclui a tributação dos dividendos a cargo dos organismos que abrange, seja através do imposto do selo ou do imposto específico previsto no artigo 88.°, n.º 11, do Código do IRC. E, tendo em conta que a tributação dos dividendos é feita segundo modalidades diferentes, nada indica que a carga fiscal que onera os dividendos auferidos pelos OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação portuguesa seja mais reduzida do que a que recai sobre os dividendos auferidos em Portugal por um organismo como o OIC estrangeiro. A Autoridade Tributária e Aduaneira acrescenta que também não está demonstrado que a parte do imposto não recuperada pelo OIC estrangeiro não possa ser recuperada pelos investidores desta última.

Nestas condições, o Tribunal Arbitral decidiu suspender a instância e submeter, ao TJUE, as questões prejudiciais que, substancialmente, se podem resumir a saber se os artigos 56.° e 63.° do TFUE devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação de um Estado‑Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um OIC não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção. O TJUE interroga‑se, por um lado, sobre a questão de saber se o tratamento fiscal diferente, em função do local de residência da instituição beneficiária, pode ser justificado pelo facto de os OIC residentes estarem sujeitos a outra técnica de tributação e, por outro, se a apreciação da comparabilidade das situações dos OIC residentes e dos OIC não residentes para efeitos de determinar se existe uma diferença objetiva entre estes, de molde a justificar a diferença de tratamento instituída pela legislação desse Estado‑Membro, deve ser efetuada apenas ao nível do veículo de investimento ou deve igualmente ter em conta a situação dos detentores de participações sociais..

Primeiramente, entendeu o TJUE que uma vez que a legislação nacional em causa no processo principal tem por objeto o tratamento fiscal de dividendos recebidos pelos OIC, deve considerar‑se que a situação em causa no processo principal é abrangida pelo âmbito de aplicação da livre circulação de capitais.

Por seu turno, quanto à existência de uma restrição à livre circulação de capitais, considerou o TJUE que, no caso em apreço, é facto assente que a isenção fiscal prevista pela legislação nacional em causa no processo principal é concedida aos OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação portuguesa, ao passo que os dividendos pagos a OIC estabelecidos noutro Estado‑Membro não podem beneficiar dessa isenção. O TJUE conclui que, ao proceder a uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OIC não residentes e ao reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção dessa retenção na fonte, a legislação portuguesa materializa um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes. Este tratamento desfavorável pode dissuadir, por um lado, os OIC não residentes de investirem em sociedades estabelecidas em Portugal e, por outro, os investidores residentes em Portugal de adquirirem participações sociais em OIC e constitui, por conseguinte, uma restrição à livre circulação de capitais proibida, em princípio, pelo artigo 63.° TFUE.

Todavia, apesar da tal situação ser discriminatória e restritiva da livre circulação de capitais, poderia, em tese, ser admitida, desde que se demonstrasse que a diferença de tratamento daí decorrente diz respeito a situações que não sejam objetivamente comparáveis ou se justifique por uma razão imperiosa de interesse geral.

O TJUE entendeu que a situação dos OIC residentes é comparável à dos OIC não residente, na medida em que, em ambos os casos, os lucros realizados podem, em princípio, ser objeto de dupla tributação económica ou de tributação em cadeia. Por conseguinte, o critério de distinção a que se refere a legislação nacional em causa no processo principal, que tem por objeto unicamente o lugar de residência dos OIC, não permite concluir pela existência de uma diferença objetiva de situações entre os organismos residentes e os organismos não residentes.

Quanto à existência de uma razão imperiosa de interesse geral, o TJUE considerou que a necessidade de preservar a coerência do regime fiscal nacional não pode ser invocada para justificar a restrição à livre circulação de capitais induzida pela legislação nacional em causa no processo principal, bem como, que a justificação baseada na preservação de uma repartição equilibrada do poder de tributar entre os Estados‑Membros também não pode ser acolhida.

Nestes termos, e considerando a factualidade subjacente ao caso em análise, concluiu o TJUE que o princípio da livre circulação de capitais da UE se opõe à legislação de um Estado-Membro segundo a qual os dividendos distribuídos por empresas residentes a um OIC não residente estão sujeitos a retenção na fonte, enquanto os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos de tal tributação.

As consequências práticas do acórdão do TJUE

Apesar de tal decisão estar em linha com outras decisões nacionais, a pronúncia do TJUE nos termos realizados veio, definitivamente, resolver a questão, dissuadindo eventuais decisões em sentido contrário. Tanto assim é que, desde tal decisão, já foram proferidas, pelo CAAD, cerca de duas dezenas de decisões arbitrais, sempre seguindo a linha da decisão do TJUE, como é exemplo a Decisão Arbitral proferida a 8 de agosto de 2022, no âmbito do Processo 624/2022-T.

Considerando o impacto do referido Acórdão do TJUE, é expetável que se venha a assistir a uma maior litigância por parte dos contribuintes (OIC estrangeiros) que podem, e devem, recorrer aos tribunais nacionais para se fazerem valer da decisão do TJUE. Neste aspeto, salienta-se que os contribuintes podem requerer uma Revisão Oficiosa do imposto pago em liquidação emitidas nos últimos 4 anos, ou seja, à data, podem ser requeridas revisões de liquidações emitidas desde setembro de 2018 em diante.

A título de nota final, salientar que, apesar do Acórdão do TJUE se referir expressamente à questão de OIC constituídos ou que operem segundo leis de outros Membros da União Europeia (ou, ainda, no Ex-paço Económico Europeu), considerando que a liberdade de circulação de capitais é uma liberdade extensível a Estados Terceiros à União Europeia, mesmo os OIC constituídos ou a operar em Estados terceiros poderão fazer-se valer desta decisão do TJUE.