Abrandamento em terra, recessão à vista?

Jorge Silveira Botelho BBVA AM
Jorge Silveira Botelho. Créditos: Vítor Duarte

TRIBUNA de Jorge Silveira Botelho, CIO da BBVA AM Portugal.

Um dos temas que está na ordem do dia é o de abrandamento económico e o risco de uma eventual recessão global, como uma consequência de todos os choques sucessivos da oferta, da subida da inflação e das taxas de juro, da consequente descida dos salários reais e do rendimento líquido das famílias. A somar a isto, um conflito regional de cariz global, com complexos impactos sociais e materiais, que se fazem sentir de forma transversal nas expectativas dos diferentes agentes económicos.

Tudo isto é verdade e facilmente comprovado, mas este é só um dos lados da realidade económica social que emerge deste pós pandemia. Existem outras dimensões, não menos relevantes, que também devem ser enunciados e que contrariaram em muito, o discurso fatalista de uma recessão, que em muitos casos a suceder, pode ter um cariz mais técnico do que fundamental, ou porque, grande parte dos seus efeitos estão amplamente descontados na economia.

Uma primeira dimensão a reter é que a pandemia acelerou uma tendência de (re)industrialização do Ocidente, que vinha com algumas sementes lançadas pela política aduaneira da anterior Administração Americana, mas que a pandemia acabou por expor a nu essa necessidade de (re)industrialização. Depois a invasão da Ucrânia limitou-se a cristalizar irremediavelmente essa necessidade, criando um nova ordem, ao lançar as bases para a criação de um novo Mercado Comum no Ocidente. Esse é provavelmente também um dos fatores que explica porque no Ocidente tenhamos assistido a um salto brusco dos preços de muito bens e serviços, mas que transversalmente também exista tanta falta de mão-de-obra.

Uma segunda dimensão prende-se com o facto dos Bancos Centrais no Ocidente, terem sido demasiado lentos em admitir que tinham de gradualmente começar a retirar os enormes estímulos monetários em que as suas economias estavam expostas. Há menos de um ano a FED ainda fazia tabu para reduzir o seu programa de ativos, enquanto agora se precipita a subir taxas de juro, dando imprecisos e sucessivos sinais contraditórios aos agentes económicos. Por outro lado, o BCE viciou a sua economia em taxas de juro negativas durante demasiado tempo, vendo-se agora aflito em normalizar a sua política e, simultaneamente, garantir o seu compromisso de evitar a fragmentação financeira. Mas não obstante este período conjuntural de subida de taxas de juro, as taxas de juro reais e nominais vão continuar estruturalmente baixas a médio e longo prazo.

Muito desta reação tardia dos Bancos Centrais pretende apenas ter um efeito placebo, porque na prática para grande parte desta inflação, a política monetária é ineficaz e em alguns casos contraproducente. O mundo confrontou-se com múltiplos choques do lado da oferta: choque nas cadeias de abastecimento, choques energéticos, choques alimentares e um choque na realocação dos recursos derivado das novas políticas de (re)industrialização. Por tudo isto, tivemos um súbito rerating de preços de muitas matérias-primas e consequentemente de muitos bens e serviços. Mas depois de alcançado este novo patamar de preços, não significa que a partir de agora vamos ter uma subida sustentada dos mesmos. A economia global começa a normalizar-se e a recompor-se nesta nova era pós-Covid e muitos dos efeitos perniciosos que as roturas de abastecimentos provocaram começam gradualmente a dissipar-se. Este é apenas o desfecho lógico de uma economia de mercado onde a tecnologia assume um papel cada vez mais eficiente na alocação cada vez mais eficiente de recursos.

Uma terceira dimensão que não deve ser de todo desvalorizada são as dinâmicas próprias do mercado imobiliário. Parece óbvio que este é sempre um dos temas suspeitos de detonar uma recessão. Uma rápida subida das taxas de juro tem sempre implicações neste mercado, com reflexos bastante negativos no setor financeiro, provocando uma crise transversal na economia. É verdade que foi assim em 2008 durante a grande recessão, mas contrariamente a essa crise, a subida de preços do mercado imobiliário não tem uma razão especulativa, mas sim é fruto de uma profunda alteração das necessidades e das preferências dos consumidores. É intuitivo entender que taxas de juro mais elevadas vão arrefecer parcialmente o mercado imobiliário, mas desta vez, sem um impacto material nas suas dinâmicas. Para além de que persiste escassez de oferta de casas em praticamente todos os países no Ocidente, os riscos de execuções e de vendas forçadas são diminutos, fruto dos elevados níveis de emprego e dos baixos valores faciais dos empréstimos nos livros dos bancos. Acresce o facto, de que os bancos estão extremamente bem capitalizados e que a riqueza líquida das famílias em termos agregados subiu durante a pandemia derivado das poupanças. Mas o fator mais relevante que ocorreu neste mercado, adveio das alterações subjacentes da procura, onde a forte alteração das necessidades e das preferências dos consumidores conferiu à habitação uma prioridade superior. A dimensão dessa prioridade foi de tal ordem, ao ponto de que, quase se equipara a importância de deter uma casa própria, à necessidade de mobilidade intrínseca que está subjacente na detenção de uma segunda habitação.

Por fim, a dinâmica endógena da atividade económica neste pós pandemia encontra-se sólida e está a ser subestimada, não só pela normalização de alguns hábitos de consumo, mas também pelos efeitos disruptivos que a tecnologia veio trazer. Estamos perante um novo paradigma energético e tecnológico que vai ter consequências reais nas dinâmicas de investimento durante os próximos anos, ao nível das infraestruturas, na transição energética, na conectividade, na mobilidade, na digitalização da economia e no uso transversal da inteligência artificial, tanto na indústria como nos serviços.

É neste contexto, que o mundo acorda neste pós pandemia, onde os dissabores de uma guerra geram a formação de expetativas de uma desaceleração económica mais pronunciada, relegando temporariamente para segundo plano, toda a grandeza de uma alteração estrutural das preferências dos consumidores, num quadro de uma maior sustentabilidade e de um brutal choque tecnológico.

Este período das nossas vidas, não vai ser certamente recordado, porque andávamos desesperados a vasculhar no passado analogias de recessões nos recortes de jornais antigos. Este é um daqueles raros momentos em que a humanidade rescreve a sua própria história.

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