Análises em tempos de guerra

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Jorge Silveira Botelho. Créditos: Vítor Duarte

TRIBUNA de Jorge Silveira Botelho, CIO da BBVA AM Portugal.

Para além do carácter desumano que está sempre associado à violência de uma guerra, existe sempre espaço para o insólito, onde a coragem de uns altera inesperadamente o seu desfecho. É neste contexto do insólito, que faz sentido medir o alcance desta guerra na Europa e antecipar algumas das suas possíveis consequências:

Em primeiro lugar, a destruição económica dos países envolvidos no conflito é real, apesar da natureza das causas ser diferente. A reconstrução da Ucrânia vai exigir um esforço financeiro muito relevante, que deverá recair em grande parte no Ocidente. Por outro lado, o isolamento da Rússia, com a aplicação das sanções e a própria reconversão energética na Europa, vai isolar ainda mais este país. A Rússia vai perder grande parte do seu mercado de exportação a Ocidente e não vai deter um mercado de capitais a funcionar durante muitos anos.

Em segundo lugar, porque a transição energética vai ser uma realidade efetiva, antecipando as métricas mais ambiciosas da ONU. A independência energética deixou de ser apenas uma emergência climática, para também ser uma emergência de segurança nacional para garantir a defesa dos valores democráticos do Ocidente. Ao ponto de que, quanto mais lenta for a resposta da OPEP para estabilizar o mercado petrolífero, mais rápida se vai processar a transição energética. A redução do consumo de energia fóssil vai ser alvo de políticas e de leis focadas na restrição do consumo e na maior eficiência energética.

Em terceiro lugar, no Ocidente vamos assistir a uma reversão de toda a política de Donald Trump em matéria de segurança e de comércio com a Europa. O regresso da discussão da ideia de Obama de um mercado comum entre a Europa e a América do Norte, vai ser uma inevitabilidade, uma vez que os EUA vão fornecer grande parte da energia e do armamento à Europa, a qual em contrapartida procurará obter condições vantajosas para vender os seus bens e serviços. Quanto ao Reino Unido, este deverá continuar a questionar-se sobre o propósito e o alcance estratégico do seu do Brexit...

Em quarto lugar, os Bancos Centrais vão continuar a lidar com a retórica da inflação, mas não vão poder ir muito longe. Não só porque a retirada de estímulos não resolve o problema atual da inflação, mas também porque a permanência de custos mais elevados fruto da subida dos preços de energia vai ter um impacto na desaceleração do crescimento económico e atenuará as supostas pressões inflacionistas no mercado de trabalho. Acima de tudo, os Bancos Centrais Ocidentais vão ter de garantir o sucesso da transição energética, suportando o endividamento dos governos, porque em última análise, esse vai ser o motor para a desaceleração da inflação.

Em quinto lugar, para além das armas bélicas tradicionais, o poder destrutivo das armas financeiras ganhou uma nova dimensão com as sanções, quer pela inibição parcial de pagamentos internacionais via SWIFT, quer pelo congelamento de reservas de um Banco Central de um estado soberano. Tudo isto já está a ter um impacto na forma como os Bancos Centrais estão a repensar alocação das suas reservas e no próprio fim da dolarização dos commodities, com países como a Arabia Saudita a ponderarem aceitar o yuan como moeda de pagamento das suas exportações de petróleo para a China. O passo seguinte vai ser a aceleração da introdução das moedas digitais centralizadas e as suas implicações ao nível das trocas nacionais e internacionais, onde atualmente a China ganha vantagem.

Em sexto lugar, e como já tem sido um hábito, a China depois de ter ganho com a pandemia é aparentemente de novo o grande triunfador. No entanto, a taxonomia também ganha um precioso aliado, porque não chega parecer, é preciso ser em matéria de cumprimento dos critérios ESG. Quem não cumprir com regras básicas, como as que vinculam os princípios elementares da carta das Nações Unidas, como a observância dos direitos humanos e o respeito pelas liberdades fundamentais, pode deixar de ser elegível como destino de investimentos. A China parece ter já recentemente começado a apreender essa realidade, procurando anunciar algumas ténues medidas que visam adereçar essa necessidade, mas não chegam...

Em sétimo lugar, não devemos subestimar a dinâmica endógena de como a economia global emergiu desta pandemia. É certo que vamos ter um menor crescimento do que o previsto para este ano, mas não podemos ignorar que ainda estamos a dar os primeiros passos dentro de uma enorme revolução tecnológica. Os próprios índices de atividade referentes ao mês de março demonstram essa mesma resiliência da economia global. Apesar de entrarmos numa nova era da (des)globalização, os mecanismos de transmissão económica e financeira e a partilha do conhecimento, vão continuar a ser globais, exigindo a interatividade comercial entres os diferentes blocos e regiões do globo. Países como a Índia podem finalmente começar a fazer diferença nas dinâmicas económicas na Ásia,

Por fim, esta revolução tecnológica, vai ter importantes implicações sociais, vai provocar alterações substanciais no mercado de trabalho, vai reforçar enormemente as preferências da sustentabilidade dos diferentes agentes económicos e vai profundamente transformar os hábitos de consumo de bens e serviços, ao nível da frequência, da posse versus usufruto e da experiência sensorial da realidade virtual. Deste modo, a alocação de ativos e os fluxos de capitais podem vir a estar sujeitos a profundas alterações durante os próximos anos, ao nível das classes de ativos, dos setores, das regiões, onde taxonomia associada a esta revolução tecnológica vai alterar profundamente muitos modelos de negócio, tal e qual como os conhecemos.

Nesse sentido, as próprias dinâmicas desta revolução tecnológica, vão também ter um impacto significativo nas expetativas de inflação. De facto, a inflação não é um problema estrutural de longo prazo, daí que o regime de taxas de juro reais estruturalmente baixas a longo prazo vai permanecer presente durante muitos anos, continuando a suportar o valor dos ativos reais, sobretudo aqueles que emergem da primeira derivada ESG: Equities, Soils & Gold.

É por tudo isto que seguramente vamos viver num mundo diferente, daquele que temos vivido até então!