Baluarte: "Embora não defendamos os atuais níveis de valorização das ações como irracionais, a aparente descoordenação com o mercado de dívida sugere precaução"

Rita González
Vitor Duarte

O primeiro semestre de 2019 ficou marcado por um movimento de valorização generalizada dos mercados financeiros. Das acções às obrigações, todas as classes tradicionais beneficiaram de expressivas apreciações.  A retoma das negociações entre os Presidentes Trump e Xi Jinping, aliada ao manifesto pró-expansionismo por parte das autoridades monetárias da Europa e EUA, fomentaram novo apetite pelas classes de risco e, em simultâneo, a queda das yields das obrigações de governos e empresas.

O acumulado histórico de avanços e recuos no âmbito da Guerra Comercial entre os EUA e a China teve, no encontro à margem da cimeira do G-20, um registo favorável.  Os Presidentes das duas principais potências económicas mundiais acordaram a reabertura das negociações, alimentando as expectativas de possíveis tréguas a prazo. Por agora, os EUA anunciaram a suspensão da aplicação de novas tarifas sobre produtos importados da China (com um valor estimado de USD 300 mil milhões), enquanto que a China se terá comprometido com importação de bens alimentares americanos, sem que, no entanto, seja conhecida qualquer referência de valor para este compromisso. Das negociações resultou ainda a suspensão da proibição imposta pelos EUA à Huawei sobre a negociação com empresas norte-americanas tendo, contudo, sido reiteradas as restrições nos casos em que a segurança nacional norte-americana seja susceptível de ser posta em causa. Apesar da ausência de previsibilidade sobre a duração deste “acordo”, o mercado recebeu estas notícias com forte entusiasmo.

No entanto, a Guerra Comercial entre os EUA e a China deverá estar ainda longe do fim, dada a persistência de fulcrais divergências sobre as quais não foram reconhecidos quaisquer avanços, como são as questões relacionadas com a propriedade intelectual ou a implementação de reformas estruturais na economia chinesa.

O optimismo gerado com estas notícias, no que respeita ao seu impacto sobre a evolução da economia global, não está, no entanto, alinhado com as preocupações expressas pelos Presidentes dos Bancos Centrais.

Nos EUA, o Presidente Jerome Powell, revelou preocupações da Fed sobre o aumento dos riscos e incertezas globais e consequente disponibilidade para a implementação de um corte “preventivo” da taxa directora (actualmente 2.25% - 2.50%). Das suas declarações resultaram expectativas de dois cortes até ao final do ano, devendo o primeiro ser efectivado ainda em Julho. No seu testemunho semestral ao Congresso, Powell declarou que “as incertezas em torno das tensões comerciais e preocupações sobre a força da economia global continuam a pesar sobre as perspectivas económicas dos EUA”, apesar da trégua comercial (a que não fez qualquer referência) e da força dos números de emprego e inflação de Junho.

Também na Europa, Mario Draghi, corroborou a necessidade de implementação de novos estímulos por forma a prevenir um potencial agravamento do ambiente económico. A indicação de Christine Lagarde como presidente do BCE agradou os investidores, reforçando as expectativas de intervenção do BCE.

As reiteradas mensagens acomodatícias por parte dos principais bancos centrais promoveram descidas generalizadas das taxas de juro, alimentando as convicções de que a conjuntura global poderá gozar de taxas mais baixas por mais tempo. Se, por um lado, este ambiente de ampla liquidez beneficia o mercado financeiro, por outro, a sua natureza não pode ser ignorada.

O expansionismo monetário tem na sua origem sérias preocupações sobre a evolução futura da actividade económica. Para além da inevitabilidade da desaceleração imposta pela fase tardia do ciclo em que a economia global se encontra, os riscos políticos mantêm-se na ordem do dia: tensões comerciais entre os EUA e o resto do mundo; possibilidade de um hard Brexit; tensões EUA-Irão.

Os principais índices accionistas atingiram novos máximos, numa altura em que mais de $ 13 triliões de dívida global transacionam com rendimentos negativos, o que corresponde a cerca de 25% do índice "Barclays Global Aggregate”.

Esta euforia frágil poderá ser seguida por agressivas correcções caso a actuação dos bancos centrais não vá ao encontro das expectativas, nomeadamente no que respeita à calendarização ou amplitude dos cortes de taxas.

No mercado acionista, os ganhos alcançados desde o início do ano foram ainda suportados por expectativas de recuperação dos resultados das empresas, um movimento algo desfasado da fraca dinâmica revelada nos números até agora conhecidos, ainda mais num cenário em que as previsões apontam para o perigo de agravamento da actividade económica global.

Este comportamento dos mercados de acções e obrigações revela, no nosso entender, discrepâncias que deverão ser corrigidas. Se a actividade mantiver uma evolução benigna, as autoridades monetárias centrais dificilmente implementarão políticas de expansão com a amplitude esperada. Se, por outro lado, estas políticas forem implementadas, na sua essência estarão sinais e riscos que comprometem a actividade económica a prazo.

Embora os actuais níveis de valorização do mercado accionista não pareçam revelar desequilíbrios estruturais graves, até porque a rápida subida registada no início do ano se concretizou no rescaldo das fortes quedas registadas no final do ano passado, a referida dessincronização não deverá ser sustentável. De notar que todos os riscos responsáveis pelos movimentos de queda mais recentes subsistem, com especial destaque para os riscos políticos. A principal diferença entre o actual enquadramento  e o que existia em finais de 2018 consiste, de facto, na postura cada vez mais acomodatícia dos bancos centrais, por sua vez sustentada no potencial impacto negativo destes mesmos riscos.

Os indicadores económicos mais recentes não acompanham o mercado de obrigações na sugestão de uma recessão iminente. As principais economias continuam a criar emprego e os salários continuam a subir, suportando a procura. Nos EUA, a actividade de construção melhorou e o sector automóvel revela sinais de recuperação. A fragilidade dos indicadores económicos avançados foi, em grande parte, devida a quebras no sector industrial, com especial destaque para empresas exportadoras, sugerindo que os riscos de uma recessão global estão, por agora, contidos.

Face ao exposto, embora não defendamos os actuais níveis de valorização das acções como irracionais, a aparente descoordenação com o mercado de dívida sugere precaução. É neste pressuposto que nos mantemos muito cautelosos no semestre que agora se inicia.  Para este posicionamento contribuem ainda questões relacionadas com a sazonalidade típica dos mercados financeiros, em que a época estival expõe, por regra, os investidores a registos de forte volatilidade. Mantemos assim, para acções e obrigações, o nosso posicionamento de sub-ponderação por contrapartida de liquidez. Seria de esperar que a redução de exposição aos mercados de acções e obrigações tradicionais fosse compensada pela sobre-ponderação de investimentos alternativos. Contudo, esta é uma classe particularmente sensível a movimentos disruptivos, como sejam as rotações sectoriais ou volatilidade das taxas de juro. Por estas razões, mantemo-nos cautelosos nestas estratégias, privilegiando a transparência e liquidez como elementos chave da nossa selecção.

O nível de endívidamento das empresas será importante. Num ambiente ampla liquidez, em que as expectativas dos investidores quanto ao ritmo e amplitude das intervenções monetárias se encontram ao rubro, o perigo de sobre-endívidamento poderá ressurgir. Neste ambiente, dívida privada e instrumentos não líquidos têm vindo a assumir um perigoso protagonismo.

Nos EUA, o impacto dos fortes estímulos fiscais e do investimento em infraestruturas levados a cabo por Trump estão, gradualmente, a desvanecer-se, enquanto que o deficit fiscal continua a aumentar, aproximando-se agora dos 5%, num cenário em que a dívida federal já corresponde a cerca de 100% do PIB. Os efeitos negativos destes desequilíbrios têm, no entanto, sido paradoxalmente neutralizados pela ausência de sinais inflacionistas, apesar do pleno emprego. Este cenário revela fragilidades que poderão, a prazo, ter impactos negativos de amplitudes perigosas. Embora as tarifas americanas tenham, até agora, tido um impacto contido na inflação, a possível reposição do aumento para 25% sobre um leque muito mais alargado de bens será impossível de mitigar na totalidade. As empresas têm, até agora, absorvido o impacto das tarifas, tendo na última época de resultados revelado um significativo emagrecimento das suas margens. No actual contexto, caracterizado por pleno emprego e escassez de recursos, as empresas norte-americanas não terão margem de manobra em prosseguir com as estratégias que até agora permitiram a manutenção da estabilidade dos preços.

Neste enquadramento, os EUA poderão estar sob maior pressão, mantendo por isso a nossa neutralidade ao mercado norte-americano, a par de uma ligeira sobre-ponderação do mercado europeu. Alguns argumentos favorecem esta nossa preferência: estabilização nas perspectivas económicas e riscos políticos; convergência dos resultados das empresas com o resto do mundo; e avaliações atractivas numa base relativa. No entanto, a sua vulnerabilidade às repercussões da guerra comercial impõe alguma cautela. Alguns desenvolvimentos benignos, como o adiamento da imposição de tarifas às importações de automóveis e componentes da Europa e Japão, não devem ser assumidos como permanentes. O recuo na agressividade de Trump poderá dever-se apenas ao calendário eleitoral norte-americano, sendo de esperar que em 2020, ano de eleições, o candidato Trump retome este tema como uma cartada a favor da sua popularidade.

Para o Japão, as nossas expectativas são pouco entusiastas. Embora os actuais níveis de valorização sejam muito atractivos, previsíveis aumentos de volatilidade devido a fatores geopolíticos tenderão a fortalecer o iene, uma evolução por natureza desfavorável às empresas japonesas, tipicamente dependentes das exportações. Também para o mercado japonês, o ressurgimento a prazo da guerra comercial com os EUA poderá comprometer os resultados. O nosso posicionamento é, para esta região, de sub-ponderação.

Nos mercados emergentes, fracas perpectivas económicas desfavorecem a tomada de risco. A continua desaceleração destas economias e a sua fraca resistência a ambientes de adversidade global sugerem precaução, embora alguns países como Rússia, Brasil ou México, mereçam a nossa preferência. A Ásia poderá estar sob pressão. Os efeitos da guerra comercial tenderão a ampliar-se. Uma vez convictos de que negociações comerciais entre EUA e China dificilmente chegarão a bom porto, em declarada desaceleração, a China terá ainda de gerir o exponencial aumento da dívida acumulada nos últimos anos. Embora as autoridades centrais chinesas ainda disponham de alguma margem de intervenção, a imaturidade do mercado reduz a certeza da sua eficácia. Os poderosos estímulos implementados têm, até agora, tido uma tracção relativamente limitada. Embora os níveis de crescimento da economia chinesa se devam manter estabilizados até ao final do ano, o gradual desvanecimento dos efeitos das políticas de flexibilização levadas a cabo pelas autoridades chinesas e a intensificação da guerra comercial justificam precaução.  Mantemos, por isso, a nossa sub-ponderação a este mercado e, pelo seu protagonismo, para a Ásia como um todo.

As obrigações tenderão a continuar a evoluir ao sabor das mensagens dos bancos centrais. Nos EUA, a curva de rendimentos invertida sugere riscos de recessão nos próximos dois anos. A yield dos Treasuries a 10 anos já transacionou bem abaixo do mínimo do actual intervalo da taxa directora, atingindo os 2%. Na Europa, a implementação de dois movimentos de corte de 0,10% da taxa de facilidade de depósito, actualmente -0,40%, coexiste com a possibilidade de manutenção da Euribor a 3 meses em território negativo até finais de 2023. Na Alemanha, a taxa do Bund a 10 anos atingiu -0.39%, tendo igualmente sido renovados os mínimos para as Obrigações do Tesouro português para a mesma maturidade (0.29%). No que respeita a governos, na ausência de um aumento de oferta substancial por parte do governo norte-americano, as taxas não deverão sofrer aumentos muito significativos (Treasuries a 10 anos poderão estabilizar perto dos 2%). Na Europa, as taxas de financiamento do governo alemão deverão manter-se negativas a prazo (a yield do Bund alemão a 10 anos poderá aproximar-se dos -0,50%). Estas referências estão dependentes, em absoluto, do tom e actividade das autoridades monetárias centrais. Os baixos rendimentos implícitos e o perigo de corecção sugerem, para o mercado de obrigações governamentais, a sua sub-ponderação .

No mercado de crédito, assumido o nível de endívidamento das empresas como o mais critico dos factores, temos uma visão cautelosa, principalmente para os EUA. Num ambiente em que as autoridades monetárias centrais evidenciam pré-disposição para a implementação de políticas acomodatícias, exacerbando as expectativas dos investidores quanto ao ritmo e amplitude das suas intervenções, o tema do sobre-endívidamento voltará à ordem do dia. No mercado Investment Grade esperamos a ocorrência de alguns downgrades, principalmente nos EUA onde as empresas são mais propicias e desequilíbrios nas estruturas de financiamento. Este argumento também é aplicável ao mercado de High Yield norte americano.  Atribuímos por isso uma sub-ponderação a estas classes, por contrapartida de uma ligeira sobre-ponderação ao mercado de crédito europeu, que acreditamos ter características de maior resiliência.

Os próximos meses deverão ser de volatilidade. Apesar de o nosso cenário central se manter benigno, o aumento da incerteza, seja pelo potencial agravamento dos riscos, seja pela quebra de expectativas no que respeita à actuação dos bancos centrais, poderá conduzir os investidores por um percurso adverso. É neste enquadramento que mantemos a convicção sobre um posicionamento mais defensivo.