De uma crise de saúde para uma crise alimentar global?

António Marques Dias, Catarina Quaresma, António Mello Vieira, Filipe Barreto, Virgilio Garcia, CFA, Nuno Sousa Pereira, Sixty Degrees.
António Marques Dias, Catarina Quaresma, António Mello Vieira, Filipe Barreto, Virgilio Garcia, CFA, Nuno Sousa Pereira, Sixty Degrees. Créditos: Vitor Duarte

Artigo de opinião da autoria da equipa da Sixty Degrees.

No âmbito da atual crise Covid-19, importa questionar de que forma a pandemia poderá estar a afetar o mercado global de alimentos e até que ponto poderá mesmo desencadear um desequilíbrio mais profundo no setor alimentar. O surto viral tem vindo a afetar o mercado alimentar através de variados canais de transmissão, com efeitos ao nível da produção, do processamento, do comércio, dos sistemas logísticos nacionais e internacionais e da procura intermédia e final. Os fatores de produção, trabalho e capital, também são afetados, bem como a disponibilização dos inputs intermédios. Fatores macroeconómicos, incluindo variações nas taxas de juro, nos mercados de energia e de crédito, bem como evolução do desemprego, também influenciam o equilíbrio do mercado alimentar.

Em primeiro lugar, convirá perceber se os atuais níveis de oferta global de alimentos são suficientes para satisfazer as necessidades alimentares de curto/médio prazo. Para este efeito, o indicador clássico a observar será o montante de stocks mundiais de cereais. No início da crise Covid-19, os stocks mundiais de cereais situavam-se num máximo de 850 milhões de toneladas, o que compara com apenas 472 milhões de toneladas na fase inicial da crise 2007/08. No entanto, a análise não deverá ficar limitada ao nível absoluto de stocks, mas deve também ter em conta a sua distribuição por países, nomeadamente a sua concentração em termos de países armazenistas. Tal como se pode observar na tabela abaixo, o nível de concentração dos stocks mundiais de cereais já era elevado, em 2007/08, mas continuou a aumentar até 2020. Uma elevada proporção dos stocks mundiais de cereais está localizada num reduzido número de países, nomeadamente na China e na Índia. Assim sendo, apesar dos níveis elevados de stocks mundiais de cereais, em termos absolutos, a situação atual é vulnerável no sentido em que potenciais disrupções das cadeias de oferta poderão comprometer o abastecimento generalizado dada a dependência de um reduzido número de países.

Concentração dos stocks mundiais de cereais num reduzido número de países

Fonte: FAO – Food and Agriculture Organization of the UN

O grau de vulnerabilidade do sistema de comércio global de alimentos também está dependente da concentração de exportadores e importadores. Uma elevada concentração de exportadores torna os mercados mais sensíveis a eventuais restrições logísticas ou intervenções em matéria de protecionismo comercial, dificultando o acesso a alimentos por parte dos importadores. Por outro lado, uma elevada concentração do lado da importação pode fazer com que um eventual, mas acentuado, decréscimo na procura, por parte de um reduzido número de importadores, seja suficiente para afetar de forma significativa os preços, prejudicando o fluxo de receitas dos exportadores. Apesar de, em geral, termos vindo a assistir ao aumento da diversidade de exportadores e importadores, desde a crise de 2007/09, existem vários desvios à tendência geral, ou seja, várias commodities agrícolas viram essa concentração aumentar. Estas exceções podem ser observadas no quadrante superior direito do gráfico abaixo, e contemplam o arroz, e os óleos de palma e de soja, commodity em que a China se tornou o importador dominante, com uma quota de mercado a nível mundial de aproximadamente 65%. As exportações de soja também permanecem concentradas num reduzido número de países, nomeadamente nos EUA, Brasil, Argentina e Paraguai.

Alterações ao índice Herfindahl-Hirschman (2003-07 vs 2013-17)

Fonte: FAO

As cadeias de produção alimentar são geralmente intensivas na utilização do fator trabalho, especialmente no caso dos alimentos de valor superior, como o peixe e a carne. Uma vez que cerca de 80% dos países à volta do globo se encontram sob medidas de confinamento, a disponibilidade imediata dos trabalhadores para a produção agrícola está a ser fortemente afetada. O mercado laboral está a ser afetado pelas restrições de mobilidade, especialmente no que se refere à força de trabalho emigrante e pelos impactos diretos do Covid-19, em termos de saúde dos trabalhadores. Já existem vários exemplos que demonstram que as cadeias de produção de frutas, vegetais, laticínios e carne estão a ser adversamente afetadas pela escassez de oferta de recursos humanos, em resultado das medidas de combate à pandemia.

Por outro lado, a pandemia também está a provocar atrasos e interrupções nos serviços de transporte e logística. Em específico, o transporte marítimo de contentores e o transporte rodoviário já estão a ser prejudicados, envolvendo disrupções sobretudo em portos secundários, nos trajetos rodoviários para países sem costa marítima e rotas internas nos países de maior dimensão. Verifica-se também a falta de condutores de camiões devido a restrições de quarentena ou por motivos de doença. A título de exemplo, o transporte marítimo de contentores de frutos tropicais, oriundo do Sudeste Asiático, está em estado de franca disrupção, deparando-se com grandes congestionamentos nos portos de Shangai e de Tianjin, provocando assim perdas significativas em função da perecibilidade dos produtos.

No que se refere ao transporte aéreo, os aviões de passageiros tem sido reafetados para o transporte de alimentos. Dado o colapso do tráfego de passageiros a nível mundial, a capacidade diária internacional deste tipo de transporte caiu 80%, em março do ano passado. No entanto, como a procura permaneceu forte, os preços dos fretes aéreos acabaram por disparar. Segundo a FAO – Food and Agriculture Organization of the United Nations, as estimativas sugerem, que face aos níveis pré-crise, os preços subiram 20%-30% na região Ásia-Pacífico, tendo algumas rotas específicas, como a de Hong Kong para Pequim, registado acréscimos de 50%.

Muitos dos efeitos acima referidos têm posteriormente reflexos em cadeia, com um número crescente de agricultores, a nível mundial, a ressentir-se com a falta de inputs. Segundo a FAO, o baixo abastecimento de pesticidas já está a afetar a proteção das colheitas e deverá reduzir as yields de produção nos próximos meses.

Os mercados de crédito também podem tornar-se noutro canal de transmissão desta crise, afetando de forma adversa a agricultura capital intensiva e os seus níveis de produtividade. Neste âmbito, a pandemia deverá prejudicar, em específico, os países em desenvolvimento, dado o seu elevado nível de endividamento em moeda estrangeira e depreciação cambial. De facto, apesar da atuação dos Bancos Centrais, as taxas de empréstimo registaram subidas nalguns países mais pobres, como é o caso dos produtores de commodities agrícolas da América do Sul. Segundo a FAO, a Jubilee Debt Campaign reportou uma subida de 3,5pp nas taxas de juro para os países de baixo e médio rendimento, desde meados de fevereiro de 2020.

A espelhar todos os constrangimentos atrás referidos bem como o aumento da incerteza no mercado global de alimentos, os preços das commodities agrícolas têm vindo a registar uma recuperação consistente.  Segundo dados do último Food Outlook, publicado este mês pela FAO, o FAO Food Price Index, em dezembro passado, subiu 2,2% em base mensal e 3,1% em termos anuais. O valor de dezembro corresponde ao máximo dos últimos 3 anos e representou o sétimo aumento mensal consecutivo. No entanto, o valor do índice ainda se encontra cerca de 25% abaixo do seu máximo histórico (131,9), atingido em 2011.

FAO Food Price Index (nominal vs real)

Fonte: FAO

À exceção do preço do açúcar, todos os sub-índices do FAO Food Price Index registaram pequenos ganhos, em dezembro, com especial destaque para a subida dos óleos vegetais.

FAO Food Price Indices (dez’20)

Fonte: FAO

No mês passado, o sub-índice FAO Cereal Price registou uma subida mensal de 1,1%, tendo assim terminado o ano com um acréscimo de 6,6% e atingindo o valor mais elevado desde 2014. Problemas ao nível da oferta, aliados a incrementos na procura, levaram os preços do trigo e do milho a subir 5,6% e 7,6%, em 2020, respetivamente. No caso do arroz, apesar da procura global continuar pouco exuberante, o preço de exportação atingiu um máximo de 6 anos, subindo 8,6%. A FAO estima que a produção mundial de cereais tenha atingido, em 2020, as 2.742 milhões de toneladas, um aumento de 1,3% face ao ano anterior, a terceira revisão mensal negativa consecutiva. Em termos de comércio global de cereais, a FAO reviu em alta o volume estimado, para o período 2020/21, em cerca de 3,2 milhões de toneladas (+3,4%) do que no mês anterior. Esta revisão teve por base a melhoria no nível de vendas esperado de milho norte americano, em resposta à fortíssima e persistente procura chinesa.

FAO Cereal production, utilization and stocks (dez’20)

Por seu lado, o sub-índice FAO Vegetable Oil Price atingiu, em dezembro de 2020, os 127,6 pontos, um acréscimo de 4,7% face a novembro, mês onde já se tinha registado uma subida de 14%. Com estes ganhos, o índice terminou o ano a subir mais de 19%. A FAO explicou que a forte subida destes preços foi devida (i) à contração da oferta verificada nos países produtores de óleo de palma, (ii) ao aumento das tarifas sobre as exportações na Indonésia e (iii) à subida nos óleos de soja em resultado das greves prolongadas na Argentina, que impactaram tanto as atividades de esmagamento como de logística portuária.

Já o FAO Dairy Price Index registou uma subida mensal de 3,2% mas, mesmo assim, acabou o ano com uma contração de 1%. O mês de dezembro representou a sétima subida mensal consecutiva, em resultado de forte aumento da procura de leite por receios que as condições meteorológicas, na Oceânia, pudessem impactar a respetiva capacidade de produção

Por último, registe-se os incrementos mais suaves dos FAO Meat e FAO Sugar Price Indexes que subiram 1,7% e 0,5%, em dezembro. Já em termos anuais, estes índices acabaram por ter sortes diferentes com o preço da carne a cair 4,5% e o açúcar a subir pouco mais de 1%. Contudo, a melhoria das condições produtivas no Brasil (maior produtor mundial de açúcar) e na India (onde se espera um aumento de produção na casa dos 17%, em 2021) continuam a impedir uma expansão mais significativa no preço do açúcar.

O contexto de baixo nível geral de preços, torna ainda mais notável este disparo recente no preço dos bens alimentares registado nos últimos sete meses. Na procura das causas desta subida de preços, alguns analistas levantaram a hipótese, à semelhança do sucedido pós-QE2 da Fed, desta situação estar intimamente relacionada com as injeções de liquidez que os Bancos Centrais têm efetuado desde que iniciaram os programas de resposta aos efeitos da pandemia de covid-19 (cerca de 0,66% do PIB mundial em cada mês). Esta liquidez, ao necessitar de encontrar um sitio para ser parqueada, acaba por elevar o preço de um conjunto alargado de ativos e assim atingir também o preço das commodities alimentares. Ao fazê-lo, traz à memória os fantasmas das fortes convulsões sociais a que assistimos nos primeiros anos da década passada, em especial aquelas que levaram a revoluções em alguns países árabes.

O preço dos bens alimentares e a Primavera Árabe

O aumento destes preços tende a ser mais gravoso nos países emergentes importadores líquidos de alimentos e/ou onde as famílias ainda gastam uma proporção elevada do seu rendimento disponível em bens de caráter alimentar.

O efeito do preço dos bens alimentares sobre as famílias nos Mercados Emergentes

Esta situação poderá ser ainda mais problemática em virtude de poder ser ampliada no âmbito do atual episódio de pandemia, com efeitos muito debilitantes sobre a saúde de milhões de pessoas à volta do planeta. Na realidade, em muitos países desenvolvidos, temos assistido ao agravar do nível de pobreza e ao aumento das necessidades ao nível alimentar.

A acrescentar a esta situação, não podemos de deixar de realçar o facto da UE pretender encetar uma transição para um modelo agrícola mais sustentável, até 2030, que poderá vir a implicar uma restrição adicional à produção de alimentos. Aliás, esta posição tem sido severamente criticada pelas autoridades norte americanas que se mostram preocupadas com os planos da EU, nomeadamente ao recusar a produção de alimentos geneticamente modificados e o uso de fertilizantes, por poderem impedir que a produção de alimentos atinja as necessidades básicas que se esperam a nível global e dessa forma contribuirem para o agravamento de uma eventual crise alimentar.

Em suma, a Sixty Degrees considera que os efeitos nefastos da pandemia, ao nível das cadeias de produção/oferta dos produtos alimentares, podem ser suficientemente gravosos e prolongados para desencadear uma nova e grande crise no setor global de alimentos.

Nesse sentido, é expectável que, nos próximos 3 anos, venhamos a assistir a subidas mais acentuadas das cotações das commodities agrícolas, criando, por um lado, um novo episódio de estagflação (tipo anos 70) e, por outro, uma excelente oportunidade de investimento. Fonte: FAO