Guia prático para o cumprimento (possível) da Green MiFID II e da Green IDD

TRIBUNA de Roberto Bilro Mendes, FS Risk & Regulation Director na PWC.

A MiFID II e a IDD passaram a Green MiFID II e a Green IDD desde o passado dia 2 de agosto de 2022, com a entrada em vigor dos seguintes Regulamentos Europeus:

  • Regulamento Delegado (UE) n.º 2021/1253 da Comissão, de 21 de abril de 2021, que altera o Regulamento Delegado (UE) n.º 2017/565 no que diz respeito à integração dos fatores, dos riscos e das preferências de sustentabilidade em determinados requisitos em matéria de organização e nas condições de exercício da atividade das empresas de investimento (“Green MiFID II”); e 
  • Regulamento Delegado (UE) 2021/1257 da Comissão de 21 de abril de 2021 que altera os Regulamentos Delegados (UE) 2017/2358 e (UE) 2017/2359 no que respeita à integração dos fatores, riscos e preferências de sustentabilidade nos requisitos de supervisão e governação dos produtos aplicáveis às empresas de seguros e aos distribuidores de seguros, bem como nas regras relativas ao exercício das atividades e ao aconselhamento de investimento para os produtos de investimento com base em seguros (Green IDD).

O documento de consulta pública da ESMA sobre as suas Orientações sobre certos aspetos dos requisitos de adequação da MiFID II (de janeiro de 2022 e ainda sem relatório final) e as Orientações sobre a integração das preferências de sustentabilidade na avaliação de adequação da EIOPA, publicadas em julho de 2022 também contribuíram para essa alteração.

Não obstante, a mudança parece ter começado com o pé esquerdo!

Analisados os diplomas, verificamos que as principais alterações prendem-se com a obrigação das instituições:

  • Integrarem as eventuais preferências de sustentabilidade dos clientes no processo de avaliação de adequação (suitability assessment) no âmbito dos serviços de consultoria para investimento, de aconselhamento sobre produtos de investimento com base em seguros e/ou de gestão discricionária de carteiras;
  • Alterarem o seu processo de suitability assessment através da criação de um questionário (suportado por um algoritmo que permita automatismos na gestão dos dados) para obterem as preferências de sustentabilidade dos seus clientes, ou através da inclusão de novas questões no questionário que atualmente têm em vigor para dar provimento aos requisitos da MiFID II e da IDD;
  • Reverem o seu processo de governação de produtos, especialmente no âmbito do fluxo de informação com os produtores (mais dados para obter sobre os produtos, sobretudo) e no âmbito da monitorização da comercialização desses produtos;
  • Alterarem a informação que prestam ao cliente no âmbito dos serviços de consultoria para investimento, de gestão de carteiras e de aconselhamento sobe produtos de investimento com base em seguros;
  • Alterarem os processos de recordkeeping por forma a garantir a existência de pistas de auditoria no âmbito da obtenção das preferências de sustentabilidade dos clientes e do seu tratamento;
  • Alterarem a informação constante nos contratos relativos aos serviços melhor referidos acima. 

Enquanto requisito principal, previamente à prestação dos serviços referidos acima, as instituições terão de obter informações específicas sobre as preferências de sustentabilidade dos seus clientes (caso existam), para além das informações relevantes sobre os conhecimentos e experiência dos seus clientes sobre os serviços e os instrumentos financeiros/produtos de investimento com base em seguros (appropriateness assessment da MiFID II e da IDD) e sobre os objetivos de investimento e a situação financeira, incluindo a capacidade para fazer face às perda e a tolerância ao risco (suitability assessment da MiFID II e da IDD). 

Nos termos e para os efeitos da legislação aplicável, apenas após obtenção dessas informações as instituições estarão capacitadas para fazer o matching entre o mercado alvo dos produtos e o perfil dos clientes, inclusive quanto às suas eventuais preferências de sustentabilidade.

Destacamos os artigos mais relevantes dos Regulamentos, antes de identificarmos as dificuldades práticas associadas ao cumprimento dos mesmos:

Regulamento Delegado (UE) n.º 2021/1253 da Comissão, de 21 de abril de 2021 (Green MiFID II)

“Artigo 1.º

Alterações do Regulamento Delegado (UE) 2017/565

O Regulamento Delegado (UE) 2017/565 é alterado do seguinte modo:

1) Ao artigo 2.º são aditados os pontos 7, 8 e 9:

«7) «Preferências em matéria de sustentabilidade», a escolha feita por um cliente ou potencial cliente de integrar ou não um ou diversos dos seguintes instrumentos financeiros na sua estratégia de investimento e, em caso afirmativo, em que medida:

a) um instrumento financeiro relativamente ao qual o cliente ou potencial cliente determina que uma proporção mínima será aplicada em investimentos sustentáveis do ponto de vista ambiental na aceção do artigo 2.º, ponto 1, do Regulamento (UE) 2020/852 do Parlamento Europeu e do Conselho;

b) um instrumento financeiro relativamente ao qual o cliente ou potencial cliente determina que uma proporção mínima será aplicada em investimentos sustentáveis na aceção do artigo 2.º, ponto 17, do Regulamento (UE) 2019/2088 do Parlamento Europeu e do Conselho;

c) um instrumento financeiro que considera os principais impactos negativos sobre os fatores de sustentabilidade, sendo os elementos qualitativos ou quantitativos que demonstram essa consideração determinados pelo cliente ou potencial cliente; 

(…)”

Regulamento Delegado (UE) 2021/1257 da Comissão de 21 de abril de 2021 (Green IDD)

“Artigo 2.º

Alterações do Regulamento Delegado (UE) 2017/2359

O Regulamento Delegado (UE) 2017/2359 é alterado do seguinte modo:

1) Ao artigo 2.º são aditados os seguintes pontos 4 e 5:

«4) «Preferências em matéria de sustentabilidade», a escolha feita por um cliente ou potencial cliente de integrar ou não um ou diversos dos seguintes produtos financeiros na sua estratégia de investimento e, em caso afirmativo, em que medida:

a) Um produto de investimento com base em seguros relativamente ao qual o cliente ou potencial cliente determina que uma proporção mínima será aplicada em investimentos sustentáveis do ponto de vista ambiental na aceção do artigo 2.º, ponto 1, do Regulamento (UE) 2020/852 do Parlamento Europeu e do Conselho (*2);

b) Um produto de investimento com base em seguros relativamente ao qual o cliente ou potencial cliente determina que uma proporção mínima será aplicada em investimentos sustentáveis na aceção do artigo 2.o, ponto 17, do Regulamento (UE) 2019/2088 do Parlamento Europeu e do Conselho (*3);

c) Um produto de investimento com base em seguros que considera os principais impactos negativos sobre os fatores de sustentabilidade, sendo os elementos qualitativos ou quantitativos que demonstram essa consideração determinados pelo cliente ou potencial cliente;(…)”

Dificuldades práticas

Na prática, por forma a dar cumprimento à legislação aplicável, as instituições deverão ser capazes de garantir o seguinte:

  1. Obter dos produtores informação relevante sobre o alinhamento dos produtos quanto ao Regulamento da Taxonomia, quanto ao Regulamento SFDR e quanto à consideração ou não dos Principle Adverse Impacts;
  2. Identificar as características dos produtos no processo de governação de produtos e aprovar o mercado alvo real, nos termos da IDD e da MiFID II, inclusive quanto aos elementos de sustentabilidade;
  3. Obter as preferências de sustentabilidade dos seus clientes, incluindo a percentagem mínima de alinhamento pretendido quanto ao Regulamento da Taxonomia, quanto ao Regulamento SFDR e quanto à consideração ou não de Principle Adverse Impacts;
  4. Informar os clientes de forma clara, transparente, objetiva e que não induza em erro sobre os seus direitos e deveres, inclusive sobre a possibilidade de revisão das suas preferências ESG, por sua iniciativa, caso não seja possível fazer o matching entre os produtos que a instituição lhe pode recomendar (consultoria ou aconselhamento) ou comercializar (ordens de compra ou venda) através de gestão discricionária de carteiras;
  5. Garantir os deveres de recordkeeping, especialmente quando existirem revisões de preferências por parte dos clientes.

Verifica-se, não obstante, o seguinte:

  • Não existe coerência entre as datas de entrada em vigor dos requisitos previstos nos vários diplomas relevantes do pacote legislativo ESG: 
    • Um dos exemplos mais relevantes será o facto de a obrigatoriedade do produtor identificar as características de sustentabilidade nos mercados alvos dos produtos relevantes no âmbito da MiFID II apenas entrar em vigor, no ordenamento jurídico nacional, em novembro de 2022 (através de alteração ao Código dos Valores Mobiliários), ao passo que para produtos e investimento com base em seguros esse requisito já entrou em vigor em agosto de 2022, no âmbito da entrada em vigor do Regulamento relevante;
    • Outro dos exemplos será a entrada em vigor apenas no dia 1 de janeiro de 2023 das Normas Técnicas de Regulamentação que fornecem orientações adicionais sobre a implementação do Regulamento de reporte de informação sobre sustentabilidade no setor dos serviços financeiros (SFDR) e do Regulamento da Taxonomia, o que não permite a existência, atualmente, de dados suficientes no mercado relativos aos produtos e ao seu alinhamento com a taxonomia ou a existência ou inexistência de principle adverse impacts nos produtos, o que leva, naturalmente, à incapacidade de executar um suitability assessment quanto a eventuais preferências declaradas pelos clientes relativos a esses elementos;
    • Tendo em conta as incoerências referidas acima e tendo em conta a inexistência de texto final das Orientações da ESMA e o facto de as Orientações da EIOPA terem assumido, por sua escolha, carácter não vinculativo , a indústria tem tido muita dificuldade em identificar a melhor forma de dar cumprimento aos requisitos, especialmente no âmbito das questões a colocar;
  • Não é possível, atualmente (e num futuro próximo), obter grande parte dos dados relevantes sobre as características de sustentabilidade dos produtos no âmbito do alinhamento com a taxonomia e quanto aos principle adverse impacts:
    • É difícil percecionar a melhor forma de dar cumprimento formal e material aos requisitos, uma vez que, nos dias de hoje, a colocação das questões previstas na legislação leva, invariavelmente, à impossibilidade de executar o matching entre grande parte  das preferências declaradas pelos clientes (especialmente ao nível do alinhamento com o Regulamento de Taxonomia e os Principle Adverse Impacts);
    • A inexistência atual de elementos referentes ao mercado alvo de sustentabilidade para instrumentos financeiros impede, desde logo, uma verificação perfeita do matching entre os produtos e o perfil dos clientes, no âmbito específico das preferências de sustentabilidade (informação entre produtores e distribuidores é, nos dias de hoje, muito deficitária e está dependente de cumprimentos voluntários de boas práticas, tal como o European ESG Template – EET da FinDaTex para organismos de investimento coletivo em valores mobiliários);
    • A inexistência de um guia claro por parte da CMVM e da ASF quanto a qualquer uma destas dificuldades leva à falta de segurança quanto à visão do supervisor neste âmbito, o que não contribui para a segurança jurídica.
  • Grande parte dos investidores não profissionais não apresenta uma literacia financeira e uma literacia de sustentabilidade suficientemente desenvolvidas, o que dificulta (muito) a compreensão por parte desses investidores das questões que lhes terão agora de ser colocadas pelas instituições:
    • Esta situação poderá levar a que os investidores declarem preferências erradamente, fundamentadas na incompreensão das diferenças entre as várias definições de sustentabilidade (Taxonomia e SFDR);
    • Neste momento a legislação coloca o ónus da identificação dos conceitos e das suas diferenças nas instituições e nos seus colaboradores, criando situações que parecem estar contra o espírito da MiFID II e da IDD, que chegam até a proibir as ações de formação por parte das instituições e dos seus colaboradores quanto a qualquer outro elemento do appropriateness assessment ou do suitability assessment por forma a garantir a inexistência de ações influenciadoras das respostas dos clientes. Neste caso concreto da sustentabilidade, parece que a opção é exatamente a contrária a essa proibição, deixando as instituições com bastantes dúvidas sobre a melhor forma de proceder (para cumprir de um lado, vou ter de incumprir no outro?).

Soluções possíveis

Tendo em conta todas as dificuldades identificadas acima, consideramos que as instituições deverão ter uma abordagem com dois grandes objetivos: (i) o cumprimento formal dos requisitos e (ii) o cumprimento material dos requisitos.

Para garantirem um cumprimento formal, consideramos que, no mínimo, as instituições deverão ponderar colocar as seguintes questões formais, totalmente alinhadas com os Regulamentos referidos acima:

  • Deverá ser feita uma primeira questão referente à existência ou não de preferências em matéria de sustentabilidade. Caso a resposta seja negativa, deverá ser identificado que o cliente tem preferências neutras em matéria de sustentabilidade, podendo, dessa forma, ser-lhe recomendados ou comercializados produtos com ou sem características de sustentabilidade;
  • Deverão ser colocadas questões específicas sobre a eventual existência de preferências por (i) produto(s) financeiro(s) relativamente ao(s) qual(quais) o cliente determina que uma proporção mínima será aplicada em investimentos sustentáveis do ponto de vista ambiental na aceção do artigo 2.º, ponto 1, do Regulamento (UE) 2020/852 do Parlamento Europeu e do Conselho (Taxonomia); (ii) produto(s) financeiro(s) relativamente ao(s) qual(quais) o cliente, ou potencial cliente, determina que uma proporção mínima será aplicada em investimentos sustentáveis na aceção do artigo 2.º, ponto 17, do Regulamento (UE) 2019/2088 do Parlamento Europeu e do Conselho (SFDR); e/ou (iii) produto(s) financeiro(s) que considera(m) os principais impactos negativos sobre os fatores de sustentabilidade (Principal Adverse Impacts);
  • Deverão ser colocadas questões específicas sobre a proporção mínima pretendida pelo cliente para as preferências que tiver indicado quanto ao alinhamento com taxonomia ou SFDR e deverão os clientes especificar os elementos qualitativos ou quantitativos que demonstrem a eventual consideração de principal adverse impacts;
  • Para obviar ao tema das eventuais preferências declaradas erradamente, fundamentadas na falta e literacia financeira e de sustentabilidade, as instituições deverão fazer questões situacionais e comportamentais aos seus clientes, através de técnicas de behaviour finance e de gamification, por forma a que essas respostas possam validar ou desvalidar as respostas às questões melhor referidas acima. A implementação de um sistema de alerta ao cliente para os casos em que as respostas diretas não correspondem às respostas dadas quanto as comportamentos pelos quais optariam em determinadas circunstâncias seria uma excelente forma de “garantir” que os clientes refletiam seriamente nas respostas dadas, que, após entregues às instituições para tratamento, definirão por completo que tipo de produtos serão ou não possíveis de lhe serem recomendados ou comercializados.

Consideramos que caso não sejam efetuadas questões semelhantes às apresentadas acima, não será possível dar cumprimento formal total aos requisitos aplicáveis. 

Numa perspetiva de cumprimento voluntário das Orientações da EIOPA, poderão as instituições, caso prestem o serviço de aconselhamento sobre produtos de seguros, acrescentar a seguinte questão, mais relevante  partir de 1 de janeiro de 2023: 

“Qual a metodologia através da qual os produtos de investimento com base em seguros podem ser avaliados no âmbito da sua sustentabilidade do ponto de vista ambiental:

  • Metodologia 1: Avaliação com base no contributo de todos os ativos subjacentes no âmbito da sua sustentabilidade do ponto de vista ambiental;
  • Metodologia 2: Avaliação com base no contributo de todos os ativos subjacentes, com exceção das obrigações governamentais, no âmbito da sua sustentabilidade do ponto de vista ambiental.”

Para garantirem um cumprimento material, tendo em conta as dificuldades práticas identificadas acima, para além da colocação das questões relevantes para o cumprimento formal e da elaboração e implementação de um algoritmo de suporte que permita a identificação dos produtos ou das carteiras de produtos que cumprem as preferências declaradas pelos clientes, consideramos que, pelo menos nesta fase, as instituições deverão elaborar e entregar ao cliente um disclaimer que especifique claramente que a instituição irá recolher, através do questionário apresentado, as preferências de sustentabilidade dos seus clientes, mas que, não obstante, por motivos alheios à instituição, não lhe será possível identificar no mercado os dados relevantes no que respeita ao alinhamento com a taxonomia e relativo aos principle adverse impacts e que esse facto não lhe permitirá efetuar, nesta fase, a correspondência entre as preferências declaradas nesses elementos e os produtos considerados individualmente ou no âmbito de um determinado portefólio.

Esse disclaimer permitirá garantir o cumprimento de um dos requisitos mais fundamentais do pacote legislativo MiFID II e IDD, pré-existente face aos requisitos agora aditados pelo pacote legislativo de sustentabilidade: a prestação de informação clara, transparente, objetiva e que não induza em erro o cliente quer quanto aos serviços quer quanto aos produtos.

Conclusão

Os requisitos aditados pelo pacote legislativo de sustentabilidade (ver tabela infra para maior pormenor quanto aos seus diplomas fundamentais) ao pacote legislativo MiFID II e ao pacote legislativo IDD estão à frente do seu tempo, no sentido em que não é ainda possível cumprir totalmente, na prática, as regras que prescrevem. 

Apesar disso e apesar dos pedidos insistentes da indústria (inclusive formais) para a alteração da data de entrada em vigor dos Regulamentos referidos acima por 6 meses ou 1 ano, a Comissão Europeia mostrou-se irredutível e os Regulamentos entraram mesmo em vigor, nos ordenamentos jurídicos dos vários estados membros, no passado dia 2 de agosto.

Essa entrada em vigor dificulta sobremaneira a implementação dos requisitos, deixando a “batata quente” para os intermediários financeiros e para os distribuidores de seguros, que agora deverão envidar os seus maiores esforços para gerirem o risco de conformidade, sempre tendo em conta a ótica do cumprimento formal em conjunto com a ótica do cumprimento material dos requisitos, que, neste momento, passará, sem qualquer dúvida, pela colocação das questões certas e pela admissão clara, transparente e objetiva aos clientes de que não poderão, por razões que lhes são alheias, cumprir totalmente com todos os requisitos em vigor.

Principais diplomas do pacote legislativo ESG e as datas mais relevantes

PWC