It’s in my nature!

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Jorge Silveira Botelho. Créditos: Vítor Duarte

(Numa reflexão sobre as moedas digitais, Jorge Silveira Botelho, CIO da BBVA AM Portugal, lembra o básico: “É a necessidade que determina a existência do ativo que queremos adquirir ou que queremos vender”.)

A fábula do escorpião e do sapo, descreve a história de um sapo relutante que acaba por acreditar nas boas intenções de um escorpião e transporta-o para a outra margem do rio, depois deste lhe prometer que não o picará. A meio da travessia, o escorpião não resiste e acaba por picar o batráquio. Em face deste desfecho trágico, o sapo pergunta-lhe – “Porque fizeste isto?, não vês que vamos os dois morrer! E então o escorpião sussurra-lhe ao ouvido: “está na minha natureza”.

Quando se fala de bitcoin ou de outras criptomoedas ou moedas digitais, existe uma certa complacência por parte dos investidores e dos reguladores em relação aos riscos deste tipo de investimentos, o que é por “natureza" um contrassenso.

A bitcoin foi lançada em janeiro de 2009 em plena crise financeira, procurando ser um sistema monetário alternativo  e global, usando uma rede descentralizada, o blockchain. Desde então, tem vindo a ganhar vida ao longo da última década e mais recentemente com o flagelo da pandemia e o excesso de endividamento ganhou um novo folgo, precipitando uma maior percepção de risco sobre a moeda fiat. De facto, o risco de debasement e a fusão entre os Bancos Centrais e os governos para combater a crise, provocou um ceticismo sobre a credibilidade da moeda. A criptomoeda bitcoin tem-se assumido como um ativo alternativo, descentralizado e de refúgio. Uma reserva de valor, que mexe por tudo e por nada, mas que ninguém objetivamente consegue devidamente valorar. Não está em causa o seu sentido disruptivo e inovador, nem tão pouco o seu propósito descentralizador, o que está em causa é se esta efetivamente detém atualmente características de um ativo de refúgio, dados as inúmeras dúvidas e riscos que persistem, cuja a enorme volatilidade tão bem ilustra...

O primeiro problema é que existe algum deslumbramento pelo facto de que muitas das moedas digitais detêm um princípio de oferta limitada. Isso aparentemente é verdade para muitos dos protocolos vigentes, mas não é verdade para criação de muitos mais. Ninguém sabe ao certo como vai poder evoluir a tecnologia daqui em diante, mas o que sabemos que está “na sua natureza” evoluir constantemente. Nesse sentido, não sabemos se blockchain é apenas um começo, e não sabemos se no futuro vão existir muitas outras moedas digitais, mais estáveis e mais seguras do que aquelas que existem atualmente. Por outro lado, não sabemos avaliar os riscos de ciberataques, mas sabemos que estes ataques "estão na natureza" do crime organizado e da espionagem de alguns Estados.      

O segundo problema que está prestes a emergir, é aquele que "está na natureza" dos Estados, ou seja, intervir e regular sobre aquilo que de um momento para outro pode constituir uma ameaça para o seu regular funcionamento. Os Estados têm de assegurar o controlo da sua política monetária, para garantir o seu financiamento e o da economia. Por outro lado, não é admissível num mundo cada vez mais focado em práticas sustentáveis,  que se deixe funcionar de forma desregulada e semi oculta, uma moeda digital. Hoje está em causa o exorbitante consumo de energia que atualmente está implícito na mineração da bitcon, mas também as boas práticas de governo, que não são compatíveis com a opacidade de um sistema que pode dar lugar ao branqueamente de capitais e ao financiamento do terrorismo.

Um terceiro problema desta pretensa reserva de valor, é que tudo o que é inovador e cuja vaidade nos impede de assumir a nossa ignorância, é alvo de fantasias, o que está muito alinhado com a "nossa natureza humana". A ganância aparece geralmente primeiro, mas há sempre uma altura que o medo surge. Quando entramos naquela fase que só ouvimos o que queremos, facilmente nos deixamos enfeitiçar e perdemos a capacidade de fazer verdadeiros e independentemente juízos de valor. Quando uma mente brilhante, empreendedora e inovadora como Elon Musk, abraça de forma quase apaixonada o conceito das criptomoedas, dá que pensar. Mas quando vimos a companhia que fundou a anunciar que detém uma posição de 1,5 mil milhões de dólares em bitcoins, devíamos também refletir se existe alguma justificação útil para que uma companhia que detém uma elevada dívida em dólares e que há dois anos esteve perto de falir, faça uma aplicação desta magnitude num “ativo” tão especulativo, que nada tem a ver com o seu core business

Apesar de todas estas dúvidas sobre o valor real das criptomoedas, ninguém tem dúvidas que vamos ter moedas digitais estáveis, privadas descentralizadas a coexistirem com moedas digitais públicas centralizadas, mas tudo ocorrerá de uma forma integrada, segura e bem regulada. O que está em causa não é o futuro da moeda digital, o que está em causa é o empolamento do conceito de reserva de valor ou de ativo de refúgio, sem se valorar devidamente os riscos implícitos que neste momento lhe estão associados. O que se deve valorar é que esta verdadeira revolução da moeda digital e da tecnologia e infraestrutura que lhe está subjacente, designadamente o blockchain, detém a capacidade de gerar mais informação, rastreio, maior transacionalidade e consequentemente maior liquidez aos ativos reais, ou seja, a simbiótica relação entre uma moeda digital estável e a sua infraestrutura tecnológica, vão ter o dom de aproximar a economia financeira à economia real de forma irreversível.

Imagine-se num futuro próximo, que o museu de arte moderna de Nova Iorque decide vender 50% do céu estrelado de Van Gogh, e está ao nosso alcance através de um dólar digital ou de uma criptomoeda privada poder adquirir 0.0001% deste quadro. Quanto valeria? Provavelmente este quadro atingiria um preço exorbitante, porque a escassez, o valor implícito da obra, a informação e a transacionalidade, despoletavam um incremento brutal da procura. O mesmo raciocínio é transversal, para tudo o que retém valor e possa desmaterializar-se.

Quanto poderá passar a valer, uma jóia, um automóvel antigo, um hotel, um edifício, uma empresa, etc, se eu puder investir apenas uma pequena parcela? Essa é a principal valência de uma moeda digital e da infraestrutura tecnológica que está por detrás, ou seja, a capacidade de desmaterializar os ativos reais e redimensionar o seu valor.

Nunca nos podemos esquecer que é a necessidade que determina a existência do ativo que queremos adquirir ou que queremos vender. A moeda não é essa necessidade é apenas um meio que permite satisfazer essa necessidade. Nesse sentido, a moeda digital e a tecnologia adjacente que a suporta  não é diferente, tal como a tecnologia, a moeda é acima de tudo um meio para satisfazer as nossas necessidades e não um fim em si mesmo, simplesmente porque essa é a “natureza das coisas”.