TRIBUNA de Guilherme Almeida, CFA, analista, Isabel Hrotko, analista, e Tiago Rabaça, investment strategist na Millennium bcp – DWM.
A pandemia gerou uma volatilidade macroeconómica inédita cujos efeitos persistem e deverão influenciar a atividade económica nos anos que se seguem. O lockdown de 2020 levou à maior e mais rápida contração do PIB global da história recente a que se seguiu uma recuperação notável em 2021. Os estímulos sem precedentes, quer fiscais, quer monetários, evitaram o colapso financeiro e fomentaram o início do processo de recuperação económica. Por outro lado, a recuperação de 2021 foi acompanhada pelo aumento da inflação, em magnitude claramente superior ao esperado, também em resultado de disrupções provocadas pela pandemia e pelo processo conturbado de reabertura. A capacidade de resposta da oferta mundial foi claramente afetada pelos constrangimentos nas cadeias de produção globais, pelo aumento dos preços da energia e pelo impacto na confiança, que afetou fortemente a oferta de trabalho. Em simultâneo, a pandemia condicionou a procura agregada, com alterações significativas nos padrões de consumo habituais, ainda muito visível na recuperação débil do sector dos serviços. A recuperação económica tem sido muito forte, mas novas vagas pandémicas sucessivas e desfasadas têm perturbado o processo de completa normalização económica.
Em 2022, espera-se uma normalização mais completa da economia global, sustentada por progressos na situação pandémica, ainda que possam surgir revés temporários, como o que agora estamos a viver com a nova variante Ómicron. Em qualquer caso, antevê-se que o impacto da situação pandémica na economia se torne cada vez menos relevante uma vez que os medicamentos, as vacinas e a imunidade natural entretanto adquirida deverão evitar o surgimento de um número elevado de casos graves, de hospitalizações e mortes. Em consequência, as possibilidades de imposição de novas medidas muito restritivas com impacto potencialmente negativo na atividade económica são muito reduzidas.
Neste contexto, antecipa-se um crescimento económico global forte e acima da média, mas esperamos também uma convergência do ritmo de crescimento para a tendência de crescimento potencial. Em geral, nos países desenvolvidos, as políticas monetárias e fiscais serão menos acomodatícias, à medida que a emergência pandémica diminui e o crescimento recupera, ao mesmo tempo que a maior incerteza em relação à inflação também poderá condicionar a postura dos bancos centrais.
Antecipa-se um crescimento forte nos EUA, assente no consumo das famílias que é suportado pelo aumento do rendimento e por um nível de poupanças elevado pós-pandemia. Em simultâneo, o investimento das empresas evidencia um ritmo muito dinâmico, beneficiando de taxas de juro baixas, ao mesmo tempo que o contributo da reposição de stocks (que se encontram ainda em níveis muito baixos) deverá ser muito positivo.
Ao contrário dos EUA e da China, a Europa ainda não recuperou completamente o nível de atividade e o quarto trimestre de 2021 será um trimestre de crescimento débil quer devido à pandemia quer também devido ao maior impacto dos constrangimentos nas cadeias de produção e do aumento dos preços da energia. À medida que estes fatores se dissipem, a atividade deverá recuperar de forma mais sustentada, beneficiando sobretudo do crescimento da procura doméstica. Por outro lado, as pressões inflacionistas na Europa são muito limitadas, pelo que o BCE deverá manter uma política muito acomodatícia, com as taxas de juros inalteradas, que suportam condições financeiras expansionistas. Adicionalmente, o programa de recuperação europeu, designadamente o investimento em infraestruturas, deverá ter um maior contributo para o crescimento em 2022.
O Japão teve uma recuperação fraca até ao terceiro trimestre deste ano, com um impacto visível do atraso na reabertura, das disrupções nas cadeias de produção e da desaceleração na China. Porém, os progressos significativos na vacinação recentemente deverão permitir uma recuperação mais forte já a partir do quarto trimestre, suportada também por novos estímulos. Ao mesmo tempo, a normalização das cadeias de produção deverá ser especialmente positiva para o Japão.
O outlook para a China é mais incerto, uma vez que a China mantém um potencial de crescimento elevado, mas enfrenta desafios cíclicos importantes com a desaceleração do sector imobiliário e com uma tendência de maior regulação da economia. Por outro lado, espera-se que, ao contrário do 2021, a condução da política económica e monetária promovam um enquadramento mais favorável à atividade económica.
Os emergentes são cada vez mais um conjunto de países com desempenhos muito diferenciados, com fatores idiossincráticos que influenciam a evolução da atividade económica de forma diversa. Em geral, espera-se um crescimento robusto das economias asiáticas, que deverão continuar a beneficiar da procura agregada robusta e de um contexto favorável do comércio internacional bem como da melhoria da situação pandémica, que suporta as exportações. Na América Latina, o contexto político tem-se tornado progressivamente mais conturbado, influenciando a condução de política económica. Porém, os preços elevados das matérias-primas beneficiam estes países em geral.
Classes de ativos melhor posicionadas para enfrentar o ano 2022
Pese os vários desafios que se antecipam ao longo do próximo ano, as nossas expetativas de evolução macroeconómica são consistentes com performances positivas de ativos de risco de um modo geral. Contrariamente ao que ocorreu ao longo de 2021, vemos como provável que a isso venha associado um aumento da volatilidade e episódios mais frequentes de correção que historicamente se verificam em fases mais avançadas do ciclo económico.
Começando pelo mercado acionista, acreditamos que continuará sustentado por fundamentais robustos. Esperamos que as empresas continuem a registar um bom crescimento de receitas e de lucros durante o próximo ano, em linha com o crescimento económico global forte. Do ponto de vista menos positivo, antecipamos que a forte expansão das margens de lucro registada durante 2021 não se volte a repetir, limitando o potencial de subida de resultados. As margens poderão ser pressionadas pela subida dos custos laborais e dos preços das matérias-primas e energia, ainda que as empresas tenham demonstrado capacidade de passar o aumento dos custos para os consumidores, mantendo margens. Uma eventual subida de impostos sobre as empresas, já sugerida pelos governos nos EUA e Reino Unido, pode também vir a comprimir os lucros. Por outro lado, embora se antecipem taxas de juro mais elevadas, os encargos com serviço de dívida deverão manter-se baixos uma vez que as empresas se refinanciaram e mantêm níveis de liquidez elevados.
O retorno esperado no mercado acionista está também condicionado pela evolução dos múltiplos de mercado. Neste aspeto, observamos que as valorizações estão historicamente elevadas e, por isso, vulneráveis a uma contração motivada por um agravamento generalizado do sentimento ou em resultado de um crescimento de lucros abaixo das expetativas que desencadeie uma revisão em baixa das projeções para os períodos seguintes. Apesar disso, acreditamos que as condições de mercado no próximo ano, ainda que em princípio pouco propícias a uma expansão de múltiplos, irão suportar as valorizações atuais essencialmente por duas razões principais. Em primeiro lugar, e como mencionado acima, o crescimento económico continuará robusto. Em segundo lugar, entendemos que as valorizações atuais quando enquadradas no contexto de mercado atual são mais razoáveis: o acréscimo de remuneração de ações (medido pela earnings yield) face a dívida governamental (taxas de juro de longo-prazo) está em linha com a média dos últimos 20 anos tanto nos Estados Unidos como na Europa.
Tal como se assistiu ao longo deste ano, o impacto destas dinâmicas deverá ser sentido de forma desigual entre geografias e setores.
No caso das ações de países emergentes, a performance em 2021 ficou bastante aquém da de mercados desenvolvidos em resultado de vários fatores como uma campanha de vacinação mais demorada que retardou a reabertura económica, o abrandamento da economia chinesa, a reversão mais acelerada dos estímulos orçamentais e monetários, assim como a forte valorização do dólar e antecipação de uma normalização da política monetária nos EUA que tornaram as condições financeiras dos emergentes mais restritivas. Em 2022, beneficiando de valorizações atrativas e aumento de desconto face a ações de desenvolvidos, os mercados emergentes podem vir a ser uma área de recuperação. Para isso será importante que as autoridades chinesas avancem com medidas mais significativas de estímulo económico e que o ímpeto regulatório, que muito penalizou as principais empresas tecnológicas chinesas, refreie.
Os bons fundamentais das empresas fazem-nos também estar positivos para dívida high-yield. As taxas de falência quer na Europa, quer nos EUA, devem permanecer em níveis muito baixos beneficiando da conjuntura económica e de custos de refinanciamento controlados. Por outro lado, consideramos apelativa a menor sensibilidade de high-yield às variações das taxas de juro. A prevalência de obrigações com maturidades mais curtas e de cupões altos, minimiza o efeito negativo da subida de taxas de juro. Também neste segmento as valorizações indiciam que o retorno futuro deverá ser mais moderado do que até aqui.
Como vimos em 2021, as classes de obrigações com menor risco como dívida pública não estão imunes a perdas em períodos de maior volatilidade. As perspetivas de rendibilidade permanecem baixas e mostram-se claramente insuficientes para investidores que tenham como objetivo mínimo preservar capital uma vez que, depois de descontada a inflação esperada, as taxas de juro oferecidas são negativas. Acreditamos que no próximo ano a política monetária tenderá a ficar mais restritiva e que isso deverá levar a uma subida das yields.
Relativamente à classe de matérias-primas, acreditamos que continuará a ser um bom diversificador das carteiras, particularmente num ambiente de inflação elevada. Estamos também confiantes nos fundamentais nos mercados de energia e metais industriais. No primeiro caso, a melhoria da situação pandémica deverá induzir maior procura particularmente no setor de viagens, enquanto que a oferta estará condicionada por vários anos de sub-investimento e uma coordenação eficaz dos limites de produção do grupo OPEC+. No segundo caso, a procura global deverá permanecer estruturalmente forte tendo em conta a dimensão dos programas de infraestruturas anunciados em vários países, os esforços de transição energética (o desenvolvimento de energias alternativas envolve a utilização intensiva de metais como cobre ou alumínio) e uma eventual re-aceleração do crescimento na China que tradicionalmente é alavancado por investimento em infraestruturas.
Outras classes de alternativos, como imobiliário, devem continuar a cumprir um papel importante de diversificação, ajudando a controlar o risco de classes tradicionais.
Áreas de investimento para 2022
Sem apontar nenhum fundo de investimento em específico, entendemos que os investidores devem continuar a privilegiar setores de mercado mais cíclicos que continuam a estar suportados por um crescimento económico robusto, através de exposições diversificadas que assegurem que as suas carteiras têm um nível de risco adequado. Também numa ótica de construção de carteiras, recomendamos que este posicionamento seja balanceado pela exposição a classes de menor risco e/ou descorrelacionadas com classes tradicionais que possam contribuir para proteger as carteiras em períodos de maior volatilidade.
Riscos que monitorizamos com maior preocupação
Nesta fase consideramos que o principal risco para a nossa visão de mercado advém sobretudo das ramificações que resultem de subidas de preços mais persistente e prolongada no tempo. Caso esse cenário se concretize, os bancos centrais podem ser forçados a acelerar a retirada de estímulos e tornar a política monetária mais restritiva para atingir o objetivo de estabilidade no nível da inflação. Ainda que a economia global esteja já a desacelerar para um ritmo de crescimento consistente com o potencial, essa alteração pode precipitar uma maior contração das condições financeiras, prejudicando o consumo e o investimento. Acresce que neste momento a capacidade da política orçamental em estimular a economia está diminuída depois de implementados os pacotes estímulos massivos durante a pandemia. Sem o suporte dos bancos centrais, dificilmente os governos podem ir além do nível de endividamento atual sem serem penalizados por um aumento expressivo dos custos de financiamento. Os bancos centrais teriam um dilema difícil pela frente, entre insistir no objetivo de controlo de preços ou ajudar a estabilizar a economia.
Num segundo plano, mas ainda um risco bem presente para os mercados como se viu com o aparecimento da nova variante Ómicron, a evolução da situação pandémica continua a ter potencial para causar dano ao crescimento económico. O surgimento de uma variante mais contagiosa, mais letal ou que evada a proteção conferida pelas vacinas e tratamentos disponíveis é um risco que não pode ser ignorado. Mesmo que medidas de confinamento geral sejam menos comuns, os eventos recentes sugerem que os governos continuam dispostos a implementar medidas que contribuam para a redução da mobilidade com impacto claramente negativo nos setores de serviços. Existe também a possibilidade de que o próprio comportamento dos consumidores mude caso a propagação do vírus se intensifique, e que isso signifique uma retração do consumo.
Um terceiro risco que monitorizamos são os temas geopolíticos, em que não podemos descartar a possibilidade de um agravamento de retórica escale para conflitos armados com potencial disruptivo para os países envolvidos, mas também em segmentos de mercado específicos nomeadamente matérias-primas.
Evolução da inflação nos próximos 12 a 24 meses
A partir do primeiro trimestre de 2022, uma queda da inflação homóloga é praticamente garantida: se não por outros fatores, pelo menos pelos efeitos de base. Nesta análise, iremos focar-nos na evolução da inflação nos Estados Unidos, uma vez que é onde consideramos que existem as pressões de preços mais marcadas. Existem rubricas como a inflação da energia (>30%yoy) em que uma desaceleração é iminente, assumindo um cenário de preços de petróleo/gás natural estáveis ou até com subidas moderadas (o que interessa para a inflação não é o nível de preços, mas sim o ritmo dessas subidas, sendo que uma repetição do ritmo de subida dos preços da energia em 2021 é altamente improvável). Dito isto, esta desaceleração homóloga apenas por via de efeitos base diz pouco sobre verdadeiras pressões inflacionistas. Assim, acreditamos que para melhor medir o pulso à inflação devemos monitorizar as variações mensais: estas têm continuado a ser relativamente elevadas (na ordem dos +0.8%mom nos últimos meses, comparando com uma média histórica em torno de +0.2%mom). Até porque, não obstante, o facto de a variação homóloga dos preços da energia explicar uma parte significativa da escalada da inflação headline, a inflação core (exclui energia) também tem acelerado significativamente. Ainda assim, esta aceleração das pressões inflacionistas tem sido justificada por fatores presumivelmente não-repetíveis: uma retoma abrupta da procura, por vezes concentrada desproporcionalmente em bens específicos, encontrou uma oferta limitada por fatores pandémicos (fecho de fábricas, perturbações no transporte, escassez de componentes…), causando assim disrupções severas nas cadeias de produção que continuam a induzir pressões nos preços.
O exemplo mais gritante é visível no mercado automóvel, onde as disrupções nas cadeias de produção foram acentuadas pela escassez global de semicondutores – como consequência, o preço de novos carros subiu +11%yoy e o preço de carros usados subiu +31%yoy em novembro nos Estados Unidos. Perspetivando 2022, assumindo uma normalização do cabaz de consumo de bens para serviços, simultâneo a uma melhoria nas cadeias de produção, antecipamos uma forte reversão na inflação dos preços dos bens (como se vê no gráfico, tem sido a inflação dos bens que tem elevado a inflação core como um todo, quando historicamente é uma componente que está em deflação!). Este alívio no preço dos bens, juntamente com a forte redução do contributo do ritmo de apreciação dos preços de energia, justifica a nossa perspetiva de desaceleração significativa da inflação em 2022. Ao mesmo tempo, a componente da inflação nos serviços (que também tendo recuperado, continua a um ritmo consistente com a sua tendência pré-pandemia, como é visível no gráfico), contém as maiores incertezas para a evolução da inflação num horizonte de médio-prazo, assim como quanto ao ritmo e magnitude da desaceleração a esperar em 2022 (se achamos praticamente garantido que a inflação irá desacelerar dos níveis atuais, não é impossível que tenha tendência para estabilizar em níveis ainda assim superiores ao target dos bancos centrais). Nesta frente, estaremos atentos à evolução das rendas e dos salários. Quanto às rendas, tem já existido uma recuperação de momentum nos últimos meses, num mercado onde também existem algum desequilíbrio entre procura e oferta (e onde há algum catch-up a ser realizado relativamente à subida prolongada do preço das casas). Este fator ganha redobrada importância, uma vez que é uma das componentes mais pesadas no cabaz de preços CPI (não tanto do cabaz PCE, o preferido da Fed). Por outro lado, a variação dos salários é importante pela pressão que poderia colocar nas margens das empresas, com consequências para a possível necessidade de aumentar preços para preservar essas margens. Para já, e embora o mercado de trabalho não pareça estar longe do pleno-emprego, não existe evidência de qualquer wage-price spiral sustentada: a aceleração nos salários tem sido concentrada em setores específicos da economia onde as labour shortages são mais acentuadas (e onde também existem fatores presumivelmente transitórios), não sendo assim, para já, uma dinâmica generalizada.
Em resumo, esperamos uma desaceleração significativa da inflação em 2022, mas com riscos que estabilize a médio-prazo a um ritmo superior ao target dos bancos centrais (em particular, nos Estados Unidos). Ao mesmo tempo, acreditamos ser importante sermos humildes a perspetivar uma variável tão complexa como a inflação, sobretudo quando a pandemia exerce efeitos sem precedente tanto sobre a procura como sobre a oferta: existem riscos tanto no upside (rendas, salários, disrupções continuadas nas cadeias de produção…), como no downside (possíveis ganhos sustentados na produtividade pós-pandemia que limitam os unit labour costs, e/ou uma recuperação mais forte do que o esperado na taxa de participação no mercado de trabalho que aliviaria as pressões sobre os salários). De qualquer modo, e de maneira importante, as expetativas de inflação de longo-prazo (tanto implícitas nos mercados, como nos questionários aos consumidores) continuam bem-ancoradas, sugerindo que uma mudança estrutural de regime é improvável.