Novas regras europeias em matéria de prevenção e de repressão do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo – Um jogo que veio para durar!

Sofia Leite Borges e Irene Teixeira de Oliveira.
Sofia Leite Borges e Irene Teixeira de Oliveira. Créditos: Cedida (Sofia Leite Borges & Associados)

TRIBUNA de Sofia Leite Borges, sócia administradora, e de Irene Teixeira de Oliveira, associada, da Sofia Leite Borges & Associados.

A 7 de maio de 2020, a Comissão Europeia (CE) divulgou um ambicioso Plano de Ação da União Europeia (UE) para reforço do quadro regulamentar europeu em matéria de prevenção e combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo (BCFT) (Plano).

O Plano encontra-se estruturado em torno de seis pilares essenciais, visando:

  1. Assegurar a aplicação efetiva do atual quadro da UE em matéria de prevenção e combate ao BCFT;
  2. Estabelecer um conjunto reforçado de regras em matéria de BCFT na UE;
  3. Introduzir uma supervisão do BCFT ao nível da UE;
  4. Criar um mecanismo de apoio e de supervisão para as UIF;
  5. Aplicar as disposições de direito penal ao nível da UE e assegurar a partilha de informações;
  6. Reforçar a dimensão internacional do quadro de prevenção e combate ao BCFT na UE.

A 27 de julho de 2021, a CE anunciou quatro propostas legislativas, que visam implementar o Plano e que se encontram ainda em discussão pelo Conselho, a saber: (i) a proposta de Regulamento relativo à prevenção da utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo (BCFT), (ii) a proposta de Diretiva relativa aos mecanismos a criar pelos Estados-Membros para prevenir a utilização do sistema financeiro para efeitos de BCFT e que revoga a Diretiva (UE) 2015/849, (iii) a proposta de Regulamento que cria a Autoridade para o Combate ao BCFT e altera os Regulamentos (UE) n.ºs 1093/2010, (UE) 1094/2010 e (UE) 1095/2010 e (iv) a proposta de Regulamento relativo às informações que acompanham as transferências de fundos e de determinados criptoativos (reformulação).

Não obstante os seus diferentes âmbitos objetivos, estas propostas têm em comum a intenção de promover a adaptação das regras da UE às novas ameaças, riscos e vulnerabilidades decorrentes da inovação tecnológica e do aumento das atividades criminosas no contexto da pandemia, garantindo um sistema integrado de prevenção e repressão do BCFT ao nível da UE e assegurando uma supervisão de coerente e de elevada qualidade no espaço europeu, a cooperação entre as várias entidades nacionais e a criação de um mecanismo de apoio e de coordenação das várias unidades de informação financeira (UIF).

As quatro propostas legislativas supramencionadas visam executar, em particular, as ações constantes dos pilares 2 e 3, supramencionados, os quais apresentam natureza programática.  

No presente artigo, abordamos de forma sucinta cada uma das propostas assinaladas, identificando as suas principais novidades e destacando aquelas que nos parecem suscitar maior relevância para as SGOIC, na qualidade de EO, sujeitas aos deveres de prevenção e combate do BCFT.

Regulamento relativo à prevenção da utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo [i]

Em termos de horizonte temporal, a proposta de Regulamento é ainda algo longínqua, já que se prevê a respetiva aplicação direta nos EM apenas decorridos 3 anos sobre a respetiva data de entrada em vigor, a qual se encontra fixada no 20.º dia posterior à publicação no Jornal Oficial da UE (JOUE).

Na proposta de Regulamento surgem alterações em diversos domínios, de entre os quais se destacam a lista de EO, políticas, controlos e procedimentos, entre os quais, os procedimentos de identificação e diligência, concretização do conceito de pessoa politicamente exposta, subcontratação, identificação de beneficiários efetivos (BE), comunicação de informações, proteção de dados e instrumentos ao portador.

A lista de EO é alargada aos prestadores de serviços com ativos virtuais, às entidades gestoras de plataformas de crowdfunding e aos operadores de migração.

A proposta de Regulamento prevê que o responsável pelo cumprimento normativo em matéria de BCFT terá de ser um membro executivo do conselho de administração da EO ou, na falta deste, um membro do órgão de direção equivalente, ou na falta deste último, um membro da direção de topo. Esta solução diverge da prevista no artigo 16.º da atual Lei de BCFT, nos termos do qual o responsável pelo cumprimento normativo tem de ser um elemento da direção de topo ou equiparado, não sendo este papel desempenhado necessariamente por um membro do órgão de administração da EO.

A atual Lei de BCFT, impõe que o dever de identificação e diligência seja realizado quando estejam em causa transações ocasionais (TO) de montante igual ou superior a EUR 15.000. Com a proposta de Regulamento, o cumprimento do dever de identificação e diligência tem de ser assegurado no caso de TO de montante igual ou superior a EUR 10.000, o que evidencia uma maior exigência no cumprimento deste dever.

A proposta de Regulamento prevê ainda a avaliação autónoma pela CE dos países terceiros de risco elevado, o que terá o potencial de gerar diferenças entre a lista da CE e a lista do GAFI.

Na proposta de Regulamento são também detalhadas as tarefas que não podem ser subcontratadas pelas EO no cumprimento do dever de identificação e diligência, as quais incluem, entre outras, as avaliações do risco da EO, o desenvolvimento de controlos internos, a elaboração e aprovação das políticas, controlos e procedimentos e a atribuição de um perfil de risco a um potencial cliente e ao estabelecimento de uma relação de negócio com esse cliente.

Quando o cliente de uma EO seja ou um OIC, as entidades obrigadas podem aferir a qualidade de BE verificando a existência de indicadores de controlo e demais circunstâncias que possam indiciar um controlo por outros meios. A proposta de Regulamento vem dar exemplos de circunstâncias que possam indiciar um controlo por outros meios.

Por fim, o dever de conservação que recai sobre as EO passa a ser de cinco anos (e não sete), após o termo da relação de negócio ou após a data da TO.

Diretiva relativa aos mecanismos a criar pelos Estados-Membros para prevenir a utilização do sistema financeiro para efeitos de BCFT[ii]

A proposta de 6.ª Diretiva BCFT vem introduzir alterações em matéria de avaliação dos riscos, registos e mecanismos de identificação de BE’s, contas bancárias e bens imobiliários, supervisão do combate ao BCFT, organismos de autorregulação, medidas e sanções administrativas, cooperação e coordenação entre UIF’s.

O prazo de transposição da Diretiva será de até 3 anos após o 20.º dia seguinte ao da publicação no JOUE.

Sem prejuízo da futura transposição da Diretiva, existem alguns aspetos que importa, desde já, salientar, dada a sua relevância prática para as EO, nomeadamente, no que respeita ao registo de BE’s. A proposta de Diretiva indica que os EM devem exigir que as informações sobre os BE’s constantes dos registos centrais sejam adequadas, exatas e atualizadas. Para o efeito, os Estados-Membros (“EM”) podem exigir à EO que a comunicação de eventuais discrepâncias seja efetuada no prazo de 14 dias de. O prazo parece representar uma atenuação do grau de exigência das obrigações que recaem sobre as EO, ao abrigo da Lei de BCFT em vigor, uma vez que esta Lei prevê que as desconformidades sejam comunicadas imediatamente, conforme previsto no artigo 34.º, n.º2, alíneae)).

No que respeita aos deveres de comunicação e abstenção, igualmente previstos na Lei de BCFT, a proposta de Diretiva apresenta alterações aos prazos de pronúncia pelas UIF’s. Neste contexto, o artigo 20.º prevê que as UIF’s possam, no prazo de 48 horas, a contar da receção da informação, impor às EO que suspendam, por um período máximo de 15 dias de calendário, uma operação considerada suspeita.

Regulamento que cria a Autoridade para o Combate ao BCFT[iii]

A proposta de Regulamento supramencionada pretende criar uma autoridade de supervisão europeia de prevenção e combate ao BCFT – a Autoridade de Combate ao BCFT (Anti-Money Laundering Authority ou AMLA).

Mais uma vez, a proposta de Regulamento será aplicável apenas decorridos 3 anos sobre a respetiva data de entrada em vigor, a qual se encontra fixada no 20.º dia posterior à publicação no JOUE.

A AMLA terá três atribuições principais, a supervisão direta das EO selecionadas que fazem parte do setor financeiro, a supervisão indireta das EO não selecionadas e das EO que não fazem parte do setor financeiro e o mecanismo de coordenação e apoio para as UIF’s.

Acrescem a estas atribuições essenciais, as competências conferidas à AMLA pela proposta de Regulamento, de adoção de normas técnicas de regulamentação, orientações e recomendações aplicáveis a todas as autoridades de supervisão nacionais, às UIF’s e às EO e de emissão de pareceres sobre todas as questões que lhe sejam dirigidas, dentro da sua esfera de competências. 

Não obstante  a pronúncia  da AMLA estar prevista como um elemento essencial à uniformização da qualidade e eficácia da supervisão do BCFT na UE, tal objetivo será mitigado pelos limites colocados à competência da AMLA em matéria de supervisão direta, uma vez que a mesma estará limitada a um conjunto bastante restrito de EO.

Admitimos que a AMLA venha a ter um papel condicionado pelo processo de seleção moroso e burocrático das EO, com resultados que podem ficar aquém dos inicialmente anunciados.  

Regulamento relativo às informações que acompanham as transferências de fundos e de determinados criptoativos (reformulação)[iv]

O Regulamento (UE) 2015/847 relativo às informações que acompanham as transferências de fundos, veio assegurar a rastreabilidade das transferências de fundos e garantir a transmissão de informações, ao longo da cadeia de pagamento, sobre o ordenante e beneficiário, sendo aplicável apenas à transferência de fundos envolvendo notas de banco e moedas, moeda escritural e moeda eletrónica.

A proposta de reformulação do Regulamento (UE) 2015/847 pretende ampliar o respetivo âmbito de aplicação, nele incluindo as transferências de criptoativos efetuadas por prestadores de serviços de criptoativos e entre prestadores de serviços de criptoativos e outras EO.

A proposta reflete as alterações à nota informativa à recomendação n.º 15 do GAFI sobre novas tecnologias, mais especificamente ativos virtuais e prestadores de serviços de ativos virtuais.

O conceito de criptoativos que deve ser tido em consideração para efeitos da presente proposta de Regulamento é aquele que resulta do MiCA, cuja proposta foi apresentada pela Comissão Europeia em 24 de setembro de 2020, sem que o texto tenha ainda sido adotado pela UE.

Conclusão

Após consulta ao site oficial da UE foi possível apurar que a discussão destas propostas se encontra em curso, tendo decorrido reuniões do Conselho sobre estes temas em setembro e outubro de 2022, o que é um sinal positivo para a saúde financeira da UE, no que respeita ao combate de BCFT.

No entanto, se no que respeita à primeira e segunda propostas legislativas,  poderão não existir grandes alterações ao texto atualmente divulgado, parece-nos que em relação às duas últimas propostas de Regulamento,  os mesmos poderão ainda sofrer algumas modificações. Por um lado, as competências da AMLA poderão, fruto das reuniões do Conselho, sofrer alterações, por exemplo, no sentido de simplificar o processo de seleção das EO sujeitas a supervisão direta. Por outro lado, a última proposta de Regulamento que analisámos, poderá sofrer alterações por força das inúmeras remissões para o MiCA, quando o texto final deste Regulamento vier a ser aprovado.

É patente a preocupação do legislador europeu no combate ao BCFT, estando as propostas europeias pensadas no sentido de uma crescente proteção dos mercados europeus e da sua maior uniformização legislativa neste domínio. No entanto, este parece ser um jogo que veio para durar, dado o horizonte alargado de aplicação ou transposição dos vários diplomas em análise.

Os EM dispõem, como vimos, de 3 anos para aprovar todas as disposições legislativas, regulamentares e administrativas necessárias para dar cumprimento à legislação europeia, data em que o Regulamento relativo à prevenção da utilização do sistema financeiro para efeitos de BCFT poderá ser aplicado em simultâneo com a 6.ª Diretiva . Em relação ao Regulamento que cria a AMLA, prevê-se que algumas disposições serão aplicadas a partir de 1 de janeiro de 2023 e outras apenas em 2024. Por fim, no que respeita ao Regulamento relativos às informações que acompanham as transferências de fundos e de determinados criptoativos , é necessário aguardar que o MiCA seja aprovado, para que este Regulamento possa também ser aplicado a nível europeu.

As cartas estão lançadas, aguardemos pela aprovação do texto final das quatro propostas acima identificadas.


Lista de acrónimos

AMLA Autoridade de Combate ao Branqueamento de Capitais e do   Financiamento do Terrorismo
BCFTBranqueamento de Capitais e Financiamento do Terrorismo
BEBeneficiários Efetivos
EMEstados-Membros
EOEntidades obrigadas
ETFExchange-traded fund (fundo de índice)
Lei de BCFTLei n.º 83/2017, de 18 de agosto, tal como alterada sucessivamente até à presente data
MiCARegulamento Europeu relativo aos mercados de criptoativos (Markets in Crypto Assets)
SGOICSociedades Gestoras de Organismos de Investimento Coletivo
TOTransação Ocasional
UEUnião Europeia
UIFUnidades de Informação Financeira

[i] Regulamento relativo à prevenção da utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo, disponível em resource.html (europa.eu).

[ii] Diretiva relativa aos mecanismos a criar pelos Estados-Membros para prevenir a utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo e que revogada a Diretiva (UE) 2015/849, disponível em resource.html (europa.eu).

[iii] Regulamento que cria a Autoridade para o Combate ao Branqueamento de Capitais e ao Financiamento do Terrorismo e altera os Regulamentos (UE) n.ºs 1093/2010, (UE) 1094/2010 e (UE) 1095/2010, disponível em resource.html (europa.eu).

[iv]Regulamento relativo às informações que acompanham as transferências de fundos e de determinados criptoativos (reformulação), disponível em resource.html (europa.eu).