TRIBUNA de Francisco Pinto, membro do departamento de Asset Management do ITIC – ISCTE Trading & Investment Club.
O dólar americano beneficiou historicamente de uma posição de superioridade como reserva de valor mundial, sendo a moeda estrangeira mais detida pelos bancos centrais a nível mundial. Esta posição do dólar permitiu alavancar a posição geopolítica americana, definindo-se como a principal superpotência mundial. Tal estatuto permitiu também ao governo americano amontoar enormes défices na balança de pagamentos, sendo esta financiada por dívida que é considerada como o ativo mais seguro para se deter, e um bilhete de entrada no círculo de comércio mundial.
Efetivamente, não apareceu nas últimas décadas uma moeda capaz de fazer face ao dólar. Por exemplo, casos como o yuan não se sobrepuseram ao enorme poderio militar e económico que os Estados Unidos apresentaram, juntamente com a profunda liquidez que a moeda dos EUA apresentou e ainda apresenta nos mercados. É, no entanto, possível que os acontecimentos recentes na Ucrânia venham fazer face ao estatuto imperturbável da reserva de valor desta moeda.
Neste sentido, é crucial refletir sobre as sanções fortíssimas impostas à Rússia por potências ocidentais, derivadas da guerra na Ucrânia. Consequentemente, tem-se testemunhado a desvalorização do rublo, tendo como consequência a colocação da Rússia quase fora dos circuitos de comércio. Porém, sendo um dos principais exportadores de petróleo e de gás natural a nível mundial, a Europa (e não só) depende da Rússia para coisas tão básicas como aquecer casas no inverno, e tal facto não pode ser ignorado.
A resposta russa e a fuga ao dólar
Quando, no mês de março, a Rússia anunciou que ia começar a cobrar as vendas de petróleo a países não-amigáveis em rublos, o valor deste disparou contra o dólar, encontrando-se atualmente em níveis pré-invasão. Com esta medida, a Rússia aplicou um cheque forte à máquina de pagamentos existente. A adicionar a este movimento as crescidas significativas reservas de ouro do Banco Central Russo, ameaçam-se criar ondas de choque nos mercados. Encontramo-nos numa situação em que é uma hipótese real a Rússia indexar o rublo ao ouro, com todas as consequências que possam advir de tal ação.
No extremo oriente da Eurásia, o outro gigante encontra-se numa situação em algo parecida à situação russa: redução das reservas em dólares e aumento das reservas de ouro. A China encontra-se agora numa situação em que pode desconfiar do dólar enquanto arma de arremesso em situações de guerra e, como tal, pretende sair deste sistema. Um movimento que atente também à necessidade da Rússia aumentar as trocas comerciais com o país, fora da esfera do SWIFT. Também na ótica da China, noticia-se que a Arábia Saudita considera receber pagamentos em yuan, sendo esta uma ameaça ao sistema de petrodólares imposto desde os anos 70.
A fuga de duas das maiores economias mundiais à necessidade de usar dólares em parte das suas transações, assim como a indexação indireta de petróleo ao ouro e a consequência implícita dos países não-amigáveis se verem forçados a trocar as suas reservas em dólares por rublos, trazem uma ameaça real ao estatuto do dólar como rei.
Um novo paradigma no oriente
Enquanto se pensa em novas formas criativas de aplicar sanções à Rússia, esta fortaleceu-se num bloco económico com a Índia e a China, vendendo petróleo a preço de desconto e proporcionando uma certa alavancagem no crescimento destas economias, particularmente a indiana. As sanções perdem o seu efeito quando quase todos os países precisam de comprar petróleo russo e acabam por, ao invés, resultar num rublo fortalecido pelo ouro e num bloco económico virado de costas para o ocidente, evidenciando um cenário demonstrativo da perda de poder ocidental e uma certa miopia quanto a efeitos de segunda ordem das sanções.
Quais serão as consequências de todo este cenário macroeconómico? É possível que as economias estrangeiras comecem a olhar para a emissão desmesurada de dólares nos últimos dois anos como uma política irracional e com efeitos na perda de valor da moeda, quando comparada com emissões controladas na China e com a procura de paridade com ouro na Rússia. Enquanto isso, um novo sistema financeiro foi criado nas costas do sistema antigo, que não pede com licença para movimentar as suas economias.
Ainda que seja cedo para concluir que este é o fim do dólar enquanto o conhecemos, porém, não podemos ser ingénuos ao ponto de ignorar a nova conjunta económica e geopolítica que se está a desenvolver nos últimos tempos.