O novo Regime da Gestão de Activos: um primeiro olhar sobre o projecto da CMVM

Marisa Silva Monteiro
Marisa Silva Monteiro. Créditos: Cedida (JPAB)

TRIBUNA de Marisa Silva Monteiro, advogada-consultora da JPAB.

Entre as matérias que lecciono no ensino superior, conta-se a unidade curricular de Organismos de Investimento Colectivo (Sociedades e Fundos de investimento), no âmbito da qual percorro, inter alia, três diplomas-chave do nosso quadro legal interno: o Código dos Valores Mobiliários, o Regime Geral dos Organismos de Investimento Coletivo (RGOIC) e o Regime Jurídico do Capital de Risco, Empreendedorismo Social e Investimento Especializado (RJCRESIE).

Ora, o Código dos Valores Mobiliários acaba de ser alterado, em profunda revisão: eliminaram-se anacronismos, procedeu-se a um novo alinhamento sistemático das matérias, introduziram-se novas figuras e reviu-se extensamente o corpus normativo do diploma. É com aplauso que o mercado e os seus agentes o recebem, desde logo por ser fruto de uma declarada vontade do legislador em agilizar o mercado de capitais nacional.

Quanto ao RGOIC e ao RJCRESIE faltava ímpeto reformista que acompanhasse as exigências de um sector em permanente inovação e reinvenção. Confesso que sempre me pareceu má técnica legislativa a utilizada no RJCRESIE, por agregar num mesmo diploma a disciplina de três modelos de investimento (capital de risco, empreendedorismo social e investimento especializado), sem tronco normativo comum ou elementos essenciais próximos e em que é necessário percorrer uma longa cadeia de remissões legais para a respectiva interpretação. Em particular, o capital de risco sofreu com esta opção legislativa de abandono de tratamento em diploma próprio, perdendo a autonomia e o relevo atribuído com a sua introdução no quadro legal português e com a profunda revisão de regime de 2007, em que o instituto do capital de risco constava de um diploma legal privativo. Acresce a insuficiência de respostas do RJCRESIE, a sua laboriosa interpretação, demandando um exercício de vaivém permanente com o RGOIC, e uma articulação complexa entre os dois diplomas.

Por isso, em boa hora, a CMVM promoveu uma revisão transversal da gestão de activos, apresentando um projecto de Regime da Gestão de Ativos (RGA) que se apresenta como diploma único, de concentração da disciplina do RGOIC e do RJCRESIE, acompanhado de uma importante revisão normativa.

Segundo o regulador, trata-se de uma revisão necessária “norteada por princípios de simplificação, clarificação e atualização” e, na verdade, deste projecto de lei emerge um novo paradigma na disciplina da gestão de activos.

Eis algumas das principais mudanças propostas. O RGA porá termo à desarmonia de soluções legais entre o RGOIC e RJCRESIE, imprimindo a coerência de um regime único e, do ponto de vista das soluções preconizadas, a hodiernidade e a ratio legis emersa do mundo prático são notas dominantes.

O RGA começa por excluir do seu âmbito de aplicação os organismos de gestão de património familiar, reconhecendo a natureza diversa de tais entidades e reconhecendo a tendência europeia crescente da sua constituição, não querendo obstaculizar internamente tal opção, com a carga burocrática de criação de um organismo de investimento colectivo.

Por outro lado, a eliminação da figura dos investidores de capital de risco (ICR), mais do que uma opção de cariz dogmático, afigura-se como simplificação do regime jurídico, em resultado da falta de adesão prática à tipologia dos ICR (não tendo sido constituído nenhum até à data).

Também no sentido da simplificação, a proposta de RGA reduz os tipos de sociedades gestoras, das actuais quatro tipologias para apenas duas: as sociedades gestoras de organismos de investimento colectivo (SGOIC) e as sociedades de capital de risco (SCR), claramente distintas entre si e claramente as mais relevantes no mercado. E, dentro de cada tipo, opta-se pela divisão nos subtipos “grande” e “pequena” dimensão, em função do volume de activos sob gestão e com a correspondência respectiva a maiores ou menores exigências e complexidade procedimentais.  

Destacamos ainda as mudanças propostas quanto aos tipos de organismos de investimento colectivo (OIC): mantém-se a grande distinção categorial entre organismos de investimento colectivo em valores mobiliários (OICVM) e organismos de investimento alternativo (OIA) e os OICVM permanecem sem subtipos. Dentro dos OIA, os subtipos são reduzidos para os seguintes quatro: OIA imobiliários; OIA de capital de risco; OIA de créditos e “outros” OIA, destacando-se a consagração de um regime próprio para os OIA de créditos.

Desta primeira leitura do projecto de RGA, saúda-se o requiem à actual disciplina prolixa e confusa, bipartida entre o RGOIC e o RJCRESIE, o reformismo e a clarificação.

A proposta de lei está em fase de consulta pública até ao próximo dia 28 de Fevereiro, pelo que os agentes de mercado poderão aceder ao documento no site da CMVM, analisá-lo e formular sugestões e comentários. Aguardemos, pois, por estes inputs e por eventuais ajustamentos no decurso do processo legislativo subsequente, sendo que o novo RGA é desde já muito bem-vindo, pela esperança primaveril de novo dinamismo no panorama nacional da gestão de activos. Um pouco ao jeito das palavras da poetisa brasileira Cecília Meireles: "Aprendi com as primaveras a deixar-me cortar e a voltar sempre inteira".


Este artigo foi escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.