Desengane-se quem pensa que 2022 vai ficar marcado pela política monetária. Na opinião da Jorge Silveira Botelho, CIO da BBVA AM Portugal, a grande montanha é a da dívida. Portanto, o foco em 2022 deverá ser o das políticas fiscais.
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TRIBUNA de Jorge Silveira Botelho, CIO de BBVA AM Portugal.
Um olhar sobre as perspetivas para o ano 2022 tem de ser forçosamente construtivo, não só porque passados estes dois anos de pandemia, a economia deu mostras de grande resistência, como agora se prepara para entrar num processo complexo de transformação de uma pandemia numa endemia. Não deixa de ser curioso como o próprio combate à pandemia gerou novas oportunidades e acelerou as grandes tendências associadas à sustentabilidade, à mobilidade, à conectividade, à automatização e à inteligência artificial. No entanto, a pandemia também gerou alguns grandes equívocos sobre o estado real da economia global, motivando os maiores desacertos sobre as alterações do regime da inflação e do consequente processo de normalização da política monetária. É precisamente com esses equívocos que vale pena investir algum tempo de reflexão, na medida em que, são sempre este género de temas que dividem os investidores e que normalmente dão lugar a boas oportunidades de investimento.
Em 2021 há que reconhecer que as dinâmicas de preços acabaram por surpreender, não só pela magnitude mas também pela sua extensão temporal, uma vez que ninguém estava à espera, que os constrangimentos do lado da oferta se tornassem tão transversais a todos os setores de atividade. A agravar esta dinâmica, tivemos a consciência que a emergência do processo de transição energética acarreta custos e que estes têm um efeito pernicioso no preço de algumas das matérias primas, sobretudo aquelas que estão associadas à construção de painéis fotovoltaicos e de torres eólicas e na produção de automóveis elétricos. Mas dito isto, e apesar de todo o entusiasmo em redor da temática da inflação, não há razões estruturais para achar que estamos sobre um novo regime inflacionário, muito menos ainda de esperar uma alteração da política de repressão financeira assente em taxas de juro nominais de curto prazo historicamente baixas e taxas de juro reais de longo prazo negativas.
As dinâmicas da inflação americana são uma boa base de amostra e um exemplo ilustrativo do que realmente se passa com a inflação O que vai continuar a sustentar a inflação americana por mais algum tempo, mas a níveis manejáveis é a componente relacionada com os custos de alojamento e rendas que representa 40% da inflação core americana, e onde se espera que o efeito de subida de 30% dos preços das casas (fonte: S&P/Case-Shiller) nestes dois últimos anos tenha um efeito retardado e prolongado no tempo. À parte disso, o efeito base da forte subida dos preços de energia já se fez sentir em 2021, e muitos dos efeitos transitórios começam a dissipar-se, bem ilustrados pela recuperação económica e pela redução dos prazos de entrega visíveis nos recentes índices ISM de manufaturas e serviços de dezembro nos EUA. O efeito de rutura de stocks não foi negligenciável em 2021, só o efeito de subida dos preços dos carros usados explicou cerca de 25% da subida da inflação core nos EUA o ano passado…
Em contrapartida, o salto tecnológico associado à sustentabilidade, acelera a passagem de um modelo económico assente na posse de bens, para um modelo cada vez mais baseado no usufruto e tecnologicamente centrado na transversalidade de prestação de serviços. Bem ilustrativo disso mesmo, são as dinâmicas na inflação dos cuidados de saúde e de serviços de educação nos EUA, que cresceram nas últimas duas décadas sempre acima da inflação, a taxas anualizadas de 3,8% e 4.61% até o final de 2019. Nos últimos dois anos de pandemia, os preços destes dois itens estão a desacelerar e apenas a crescer a taxas de 2,5% e 1,72%, respetivamente, ou seja muito abaixo da inflação… (fonte: Bureau of Labor Statistics).
É natural que um Banco Central como a Reserva Federal americana (FED) tenha necessidade de tomar uma postura mais agressiva, para demonstrar aos agentes económicos que está determinado a não deixar subir as expetativas de inflação de longo prazo. Mas a FED, também sabe que a sua margem de manobra é reduzida, a partir do momento que a Montanha chegou a Maomé”. Se já existia uma perceção de que a globalização dos fluxos financeiros e o excesso de endividamento aumentaram a sensibilidade do ciclo económico à política monetária, no pós pandemia esta dependência ainda se tornou mais evidente. A montanha da dívida global aumentou 31 pontos percentuais entre dezembro 2019 e setembro 2021, para 353% do PIB Mundial, o equivalente a uma subida de 36 biliões de dólares (fonte: Institute of International Finance)
A incontornável sensibilidade do ciclo económico à política monetária tem como reflexo a importância do comportamento dos ativos reais. Na prática, estes são a outra face da moeda que assegura a solvabilidade do sistema económico, financeiro e social. Essa é também a razão por que a política monetária tem que irremediavelmente garantir a estabilidade dos ativos financeiros, na medida em que, a queda dos mesmos mina a confiança dos agentes económicos, desestabiliza os mercados de crédito e os mercados imobiliários, e pode precipitar a economia numa espiral recessiva.
Em vez de se perder muito tempo com a discussão da lengalenga da política monetária e da inflação, em 2022 os investidores devem estar muito atentos aos acertos que podem chegar pela via da política fiscal. As necessidades de financiamento da emergência da transição energética e os evidentes condicionalismos da política monetária vão obrigar os Estados a lidarem com a política fiscal de uma forma diferente. A sustentabilidade retirou parte do carácter ideológico que muitas vezes está associado à política fiscal, na medida em que é preciso encontrar soluções de compromisso. Uma das formas mais evidentes e recentemente sugerida pela OCDE para algumas economias, é o de cortar os impostos às empresas e financiar essas medidas através de maiores impostos sobre o património. Esse pode bem vir a ser o caminho delineado daqui para frente por muitos Estados. Na realidade a política monetária tradicional de taxas de juro, dado o seu carácter transversal, uma subida mais pronunciada das taxas de juro pode ter efeitos perversos na economia. Se a preocupação de um Estado é o de frenar a valorização do imobiliário, uma vez que este gera dinâmicas inflacionistas na sua economia, uma política fiscal seletiva pode arrefecer de forma incisiva alguns segmentos desse mercado e gerar simultaneamente uma maior receita fiscal, sem colocar em risco o financiamento global da economia.
Neste contexto, e independentemente de haver espaço para alguns ajustamentos na política monetária em 2022, a essência do regime de repressão financeira não se vai alterar. Pode sim, haver uma maior granularidade na adoção da política fiscal, a qual ainda está muito subestimada pelos agentes económicos. Começa por isso a ser altura, dos investidores pensarem por eles próprios e procurarem o melhor trilho que os conduza ao sopé da montanha, porque se ficarem sentados à espera que a montanha chegue até eles, as coisas podem não correr como desejam.