O Lago dos Cisnes 29/07/2020

Jorge_Silveira_Botelho
Vito Duarte

O tema mais importante desta semana será provavelmente a realização de mais uma reunião de dois dias da Reserva Federal Americana (FED) que hoje termina.

Esta reunião ganha particular relevância numa altura em que a maior referência fiduciária e reserva de valor do sistema financeiro internacional, o dólar, começa a expor as suas fragilidades.

A FED no início de 2019 assumiu-se finalmente como um Banco Central Global, ao introduzir no seu vocabulário a palavra paciência, que na prática não foi mais do que assumir que já não podia ignorar a crescente importância das outras economias e a sua interação com a economia americana.

Num dos trabalhos publicados pela atual economista chefe do FMI, Gita Copinath, sobre as dinâmicas das divisas no comércio internacional, sobressai a evidência da contradição da ainda supremacia do dólar no comércio internacional.

Uma das mais importantes conclusões desse estudo que contraria muitas das ideias pré-estabelecidas, é que uma valorização de 1% do dólar num ano representa uma redução das trocas comerciais entre o resto do mundo, de 0,6% a 0,8%. A razão é de certa maneira intuitiva, na medida em que, a grande maioria dos preços internacionais dos bens são fixados em dólares, o que significa que quando este se aprecia, todos os restantes países vão ter menor capacidade de comprar bens entre si e naturalmente vão importar menos.

A questão que na prática este estudo levanta, prende-se com a relevância da necessidade do dólar na equação do comércio internacional, tanto mais que a dimensão dos volumes subjacentes ao comércio internacional são cada vez mais da responsabilidade de outros países. Para se ter uma ideia, o peso dos mercados emergentes no comércio internacional já supera o peso das economias desenvolvidas.

Em termos de paridade de poder de compra (PPC), as economias emergentes passaram a representar 60% da economia global, invertendo integralmente o peso de 40% que detinham face aos 60% dos países desenvolvidos, no início década de 90.

A tomada de consciência por parte da FED desta realidade e de quão agressivo podia ser o efeito ricochete da sua política monetária, está a fazê-la mudar de postura. De facto, numa economia global bastante dolarizada e muito endividada, onde segundo o IIF o endividamento atingiu 331% do PIB a nível global no 1º trimestre, a FED parece ter agora um novo roteiro, O Lago dos Cisnes, assumindo um novo personagem, o de Príncipe Siegfried.

O primeiro objetivo do Príncipe é manter o lago bem irrigado para assegurar que todos os Cisnes consigam circular de forma airosa e chegar atempadamente aos seus destinos. No fundo, a FED percebeu que para salvar a sua Princesa Odette, a economia americana, tinha de garantir que todos os outros Cisnes também encontrassem o seu caminho.

O segundo objetivo é cortar as asas ao maléfico Feiticeiro Rothbart, o flagelo da deflação. A fórmula encontrada é provocar uma desvalorização global do dólar através da adoção de uma política de taxas de juro reais de longo prazo negativas durante um período considerável de tempo.De facto, esta estratégia pode estimular a economia global e consequentemente elevar as expetativas de inflação, ao devolver maior capacidade de consumo às economias emergentes e melhorar a redistribuição de riqueza.

Por fim, o Príncipe Siegfried suplicou ao seu Rei e à sua Rainha, o Congresso e a  Casa Branca, para continuarem a lançar comida para o lago, uma vez que uma epidemia matou as plantas aquáticas e os pequenos invertebrados. A FED procura assegurar que a política fiscal não pare de funcionar, independentemente da dimensão do défice sobre o PIB (20%, 21%, 22%, 23%..).

O único Cisne que o Príncipe Siegfried não controla é a filha do Feiticeiro RothbartOdile, o Cisne Negro. Uma política de taxas de juro reais negativas muito agressiva e um excesso de endividamento do governo americano  pode provocar uma desvalorização descontrolada do dólar e abalar a confiança no sistema...

Dada a falta de alternativas de políticas neste mundo extremamente endividado, a estratégia da FED em colocar as taxas de juro reais de longo prazo em níveis negativos por um período considerável de tempo, parece ser a única solução possível para acomodar o excesso de dívida global, mas atenção é preciso estar de olho na Odile, esse  Cisne Negro que por aí esvoaça.

EUA: Dólar vs taxas de juro reais a 5 anos

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Fonte: Bloomberg, BBVA AM Portugal