Simpósio Jackson Hole 2021: a confirmação do Tapering e a volta olímpica do Sr. Powell

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João Lampreia. Créditos: Vitor Duarte

TRIBUNA de João Lampreia, chief investment strategist no BiG.

Enquadramento Histórico & Avaliação do 1º aniversário do novo mandato da Fed

Na cénica paisagem do Parque Nacional de Teton, o Simpósio de Jackson Hole no Wyoming reúne as principais figuras dos Bancos Centrais Mundiais e já foi palco de momentos de definição históricos na condução da política monetária da Reserva Federal norte-americana, a qual para simplificar, goste-se ou não, acaba por ser o Banco Central do Mundo! Assim, foi neste mesmo cenário idílico que em 2002 Alan Greenspan conduziu o seu famoso discurso sobre a difícil intersecção entre o surgimento de bolhas especulativas e a resposta monetária adequada, com as políticas da Fed centradas em mitigar o downturn económico e não focadas na prevenção de bolhas especulativas no mercado de ações. Praticamente uma década depois, foi também neste cenário que Bernanke sinalizou ao mercado uma nova ronda de Quantitative Easing, já depois da economia americana ter saído dos escombros em 2008/09 no auge da Grande Crise Financeira.

No período mais recente, o primeiro discurso de Powell no Wyoming foi também marcante: em 2018 (durante o último ciclo de tightening monetário) o atual presidente da Fed referiu que a direção da política monetária não deveria afigurar-se excessivamente restritiva em função da intitulada “sabedoria dos mandatos convencionais”, ancorados em ansiedades do passado que se materializaram em níveis de inflação descontrolada – algo com que o Mundo desenvolvido já não se debatia há praticamente 40 anos! Obviamente sem prever que viria a abater-se sobre o Mundo a maior crise Sanitária dos últimos 100 anos em 2020, o discurso de Powel dois anos antes enalteceu as virtudes do modelo da gestão de risco que a Fed veio a desenvolver em todo o seu policy mix no cenário pandémico, pelo que a essência e genialidade do discurso de Powell em 2018 (protelando a função reação da Fed) é, em grande parte, muito similar ao discurso que nos habituámos a ouvir da sua parte ao longo dos últimos 12-18 meses. Uma vez que já enunciámos múltiplos episódios históricos ocorridos em Jackson Hole ao longo do século XXI, não podíamos deixar de salientar a importância do Simpósio em 2020, no qual por via virtual (tal como em 2021) Jerome Powell explanou a revisão estratégica do mandato da Fed, permitindo essencialmente um overshoot temporário dos níveis de inflação até se concretizarem progressos mais evidentes e inclusivos no mercado laboral – traduzindo assim em “atos as palavras de 2018” ao dilatar o período temporal da função reação da Fed.

Antes de me debruçar sobre a minha interpretação daquilo que foram os principais take-aways do mais recente Simpósio de Jackson Hole, creio ser meritório fazer uma avaliação sintética daquilo que foram os resultados da adoção do novo mandato da Fed nos últimos 12 meses. Com efeito, nenhuma estratégia seria perfeita em função do nível de incerteza gerado pela pandemia, sendo que poucos antecipavam a verdadeira amplitude da resposta fiscal (recordamos que Biden ainda não havia sido eleito), isto para além dos sobressaltos com novas variantes do vírus e por choques assimétricos nas cadeias de valor que tornaram mais complexo todo o processo de reabertura económica. Os resultados são evidentemente positivos, uma vez que a recuperação do mercado laboral tem sido fulgurante e o ressurgimento da inflação atingiu recentemente os níveis mais elevados desde a década de 90 parece denotar uma natureza mais transitória à luz de múltiplos choques e de comparáveis homólogos completamente distorcidos face ao impacto pandémico. A discussão sobre a dinâmica da inflação no médio prazo continua acesa, mas por ora o mercado parece acreditar no mantra temporário que a Fed reforçou ao longo do ano. A doutrina preventiva da inflação que a Fed utilizou no passado tornou-se agora numa doutrina que praticamente inibe uma resposta à inflação até que a mesma se torne quase permanente. Quando a trajetória de toda a política monetária se torna apenas data dependente e não assenta em qualquer previsão sobre dinâmicas futuras, a função-reação da Fed é dilatada e observa-se alguma perda de eficácia dos seus instrumentos, agravando o risco de formação de bolhas especulativas e de desequilíbrios macroprudenciais – não estará a Fed também lá para isso? Não resisto a deixar uma referência histórica, citando o famoso discurso de Alan Greenspan no Simpósio de Jackson Hole em 2002, num momento em que as avaliações do mercado de ações encontram-se praticamente aos mesmos níveis de 2000 e os riscos geopolíticos voltam a colocar os holofotes sob o Afeganistão na cena internacional. Não há verdadeiramente coincidências!

Parece surgir evidência que a nossa estratégia de endereçar as consequências económicas da bolha especulativa dotcom e não a bolha em si própria foi bem sucedida. Apesar do colapso do mercado de ações, dos ataques terroristas, escândalos corporativos e intervenções militares no Afeganistão e Iraque, a recessão nos EUA foi relativamente benigna. O incremento da flexibilidade estrutural da economia e a resposta monetária agressiva foram decisivos para mitigar consequências mais nefastas neste downturn económico

Alan Greenspan @ Simpósio de Jackson Hole 2002

Key Take-Aways & Perspectivas em relação ao Simpósio Jackson Hole em 2021

Voltando ao Simpósio de 2021 subordinado ao tema “Políticas Macroeconómicas numa Economia desequilibrada” – ironicamente a ação dos Bancos Centrais tem agravado estes desequilíbrios e fomentado exponencialmente a desigualdade na última década - e ao discurso de Jerome Powell em particular. O exercício de previsões económicas e a antecipação de políticas fiscais e monetárias é muitas vezes inglório, mas o certo é que à entrada de 2021 firmemente considerámos que o anúncio do Tapering iria concretizar-se no Simpósio de Jackson Hole – precisamente como veio a suceder. Se no início do ano, o consenso de mercado para um tapering em Jackson Hole era relativamente longínquo, os últimos desenvolvimentos de mercado tornaram este fenómeno praticamente certo. Recordo o denominado agressivo choque dotplot que teve lugar em junho passado, no qual seis membros da Fed admitiram a necessidade de subir a taxa diretora já em 2022, ao passo que nas últimas semanas a divulgação das atas da Fed da reunião de julho revestiu-se de um perfil relativamente hawkish que acabou por ancorar as expectativas do mercado e constituir um prenúncio para o anúncio do tapering formalizado virtualmente em Jackson Hole. Com as taxas de juro a 10 anos nos EUA abaixo da fasquia dos 1,30%, em função de riscos de desaceleração económica por múltiplos fatores – emergência e consolidação da variante delta, crackdown regulatório na China, agravamento de tensões geopolíticas, disrupções nas cadeias de valor e algum plateau/retracement nos indicadores de inflação e queda relativa no preço de algumas commodities, Jerome Powell tinha uma oportunidade de ouro para anunciar um tapering revestido numa mensagem amplamente dovish que veio a concretizar… Em baixo destaco os principais pontos do discurso de Powell:

  • A generalidade dos membros da Fed concorda que é apropriado iniciar o tapering ainda este ano, sendo que o timeline e velocidade permanece incógnito. O anúncio do timeline em setembro com início da redução em novembro é provável, mas afigura-se irrelevante o exato momento (não tanto o ritmo) para o início do processo de redução da compra de ativos, desde que a forward guidance se mantenha estruturalmente dovish;
  • Para além de ter ancorado com grande sucesso as expectativas do mercado para o momento do tapering, a Fed assegurou sempre uma separação clara entre a redução do programa de compra de ativos e o início da trajetória de subida da taxa diretora. As lições com o Taper Tantrum de 2013 foram claramente aprendidas – atente-se aos níveis extremamente negativos das taxas reais.
  • Em relação ao mercado laboral, Powell continua a ver o copo meio vazio, aludindo que faltam recuperar quase 6 milhões de postos de trabalho, nomeadamente no sector de serviços e que a recente dinâmica de ganhos salariais não se converterá numa espiral de incrementos salariais.
  • Relativamente à dinâmica da inflação a discussão é mais acesa, não sendo por isso coincidência que Jerome Powell tenha dedicado praticamente 70% do seu texto em redor desta temática. Obviamente que não se desviou um milímetro do seu reportório dovish, citando que as disrupções nas cadeias de valor e as distorções induzidas pela Pandemia estão na base da subida de preços de um conjunto de bens/serviços restritos, cuja natureza é essencialmente transitória. Powell voltou a afirmar, tal como no seu famoso discurso de 2018, que seria um erro a Fed responder a flutuações temporárias da inflação.

Remeto uma nota pessoal sobre a evolução do binómio emprego-inflação: Na realidade temos menos pessoas a trabalhar e salários acumulados mais elevados, ao qual se agrava o efeito do aumento da poupança das famílias via transferências fiscais massivas no passado. Estes dois fatores distorcem a evolução dos indicadores de emprego e de inflação, destacando-se as ideias que: i) a recuperação do mercado laboral poderia até já estar mais adiantada não fosse o nível de estímulos aliciante que diferiu o regresso imediato de muitos ao mercado laboral; ii) não deixa de ser crível que a pressão em alta da inflação com a subida dos salários poderá ser mais duradoura que a Fed quer fazer crer. Nesta fase, a dinâmica da inflação continua a ser o principal wild-card para a consolidação da recuperação do estágio macroeconómico e para o desempenho das diferentes classes de ativos no médio prazo.

No global, o anúncio formal de tapering entregue numa semântica estruturalmente dovish por Powell revelou-se alinhado com o interesse dos investidores. Por um lado, o crescimento é suficiente para elevar a criação de emprego e os lucros das empresas, mas aporta um efeito limitado (alegadamente) no impacto duradouro da inflação. Já a abordagem ao tapering visa evitar choques e isolar o ciclo de subida das taxas de juro no policy mix da Fed a curto prazo. Sem surpresa, os ativos de risco celebraram e o mercado de ações continuou a furar máximos históricos, beneficiando em particular da outperformance lógica do sector tecnológico. Assistimos a um declínio das taxas reais nas obrigações dos EUA (subida dos breakevens e queda das taxas nominais), ao passo que as commodities registaram um desempenho igualmente positivo em contraponto a uma correção ligeira do dólar.

O gráfico acima ilustra os sucessivos máximos históricos que o mercado de acções tem fixado (pelo menos o S&P 500 que é o mais representativo e tende a definir a direção do resto do Mundo), mas começa a ser evidente que dificuldades múltiplas irão surgir nesta trajetória ascendente até agora imparável. Nos últimos 20 anos, a partir do momento em que o S&P dobrou o seu valor (valorização de 100% desde os mínimos relativos), observou-se uma correcção média em torno de 20%. Refira-se que o drawdown máximo verificado em 2021 foi inferior a 4 p.p. – traduzindo-se no 3º drawdown anual mais baixo de sempre) - que compara com um drawdown intra-anual médio em torno de 10%. Com liquidez ainda abundante e uma retirada dos estímulos gradual que procura isolar a trajetória de subida das taxas de juro, a recuperação consistente do mercado laboral, um crescimento dos resultados das empresas em torno de 25% que tende a justificar grande parte das valorizações já alcançadas este ano (~20%) e permitiu alguma compressão dos múltiplos de preço no último trimestre (ainda que permaneçam a níveis historicamente elevados), este agregado de factores a que se juntam os célebres acrónimos de TINA e FOMO têm permitido aos investidores exacerbar o mindset de Buy the Dip Nirvana, mesmo num estágio da recuperação cíclica já bastante mais adiantado. Até quando? Ninguém verdadeiramente sabe e os indicadores de avaliação fundamental são absolutamente ineficazes na tentativa de encontrar um timing na estabilização/reversão da trajectória global dos preços de mercado.    

Sinopse

Não deixa de ser uma possibilidade, mais ou menos remota, que as palavras do Sr. Greenspan que enunciei no início deste artigo de opinião regressem para ensombrar a evolução dos ativos de risco e da economia a médio prazo. Afinal, nos últimos 20 anos e com exceção da recessão pandémica do ano passado, todos os downturns económicos estiveram subjacentes à implosão de bolhas especulativas que se foram acumulando ao longo do tempo (dotcom em 2000 e imobiliário em 2008). Powell tal como Greenspan no passado tem procurado desvalorizar a abrangência e implicações de “bolhas especulativas” que o próprio já admitiu ser evidente nalguns nichos de mercado (Criptomoedas, NFTs, SPACs, Clean Energy, Micro Small Caps, etc.), mas que por ora mesmo com o seu colapso (já tivemos esse exemplo com vários destes temas ao longo de 2021) parecem ter implicações limitadas no funcionamento do Sistema financeiro e na dinâmica tanto económica como no mercado de capitais.

Tal como referiu Greenspan há quase 20 anos, a Fed não tem necessariamente de preocupar-se com a formação de bolhas especulativas temáticas ou gerais, mas sim com as implicações macroeconómicas que esses desafios venham a suscitar. Ora esse é precisamente um dos problemas com que nos encontramos no momento vigente, isto é, o enviesamento do mandato da Fed para manter níveis de inflação do consumidor pouco acima da média de 2% e a quase total ausência de preocupação com o nível de inflação que pode vir a ser atingido por Ativos financeiros e/ou reais mais tradicionais – cujo price action recente tem acompanhado (ainda que obviamente noutra dimensão) a dinâmica da performance dos ângulos mais especulativos do mercado. Este fator é obviamente um risco para a estabilidade do Sistema financeiro e tende a agravar desequilíbrios macroprudenciais, especialmente num momento em que a participação do retalho no mercado de capitais é quase 4x superior à sua média histórica. Este é claramente um dos gatilhos possíveis para a próxima recessão nos EUA e o propulsor para uma correção mais abrangente do mercado de ações, ainda que o horizonte de concretização para um cenário desta magnitude parece relativamente longínquo – encontramo-nos no estágio intermédio do ciclo de recuperação pós-Covid e o início do ciclo de subida de taxas de juro pode nem ocorrer já em 2022 (ainda que neste campo a minha visão esteja mais alinhada com alguns dos elementos mais hawkish do comité da Fed).    

Em jeito de balanço sobre as implicações de mais um evento histórico em Jackson Hole num ano que coincidiu com a realização das “adiadas” Olímpiadas de verão do Japão, resta-me apenas exclamar a minha admiração - “CHAPEAU!” para o Sr. Powell (afinal a sua acção cumpriu tudo o que considerava ser mais apropriado no início de 2021), cuja mestria na gestão da política monetária do porta-aviões do FED num momento tão complexo é merecedor de uma digna volta Olímpica…preferencialmente com algum público nas bancadas! Metaforicamente, a atribuição da sua medalha de Ouro Olímpica deverá ser entregue por Joe Biden na forma da sua mais que provável recondução no cargo de presidente da FED quando o actual mandato de Powell expirar em Fevereiro de 2022