Impactos colossais e transversais ao mercado

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A proteção do investidor tem sido e será um dos principais objetivos da legislação de MiFID II. Vários anos depois do início de um processo legislativo europeu e alguns meses depois da sua oficial transposição para as realidades nacionais, torna-se cada vez mais claro o caminho escolhido por parte de muitos intermediários financeiros relativamente à sua aplicação prática.

E foi neste contexto que a PwC e a CFA Society Portugal organizaram uma conferência que contou com a participação de representantes de três entidades distintas, cada uma com uma visão particular do que a legislação representa e de como está a ser posta em prática. Tiago dos Santos Matias, Diretor do Departamento de Supervisão Contínua da CMVM, Roberto Mendes, Manager do Departamento de Risk & Regulation da PwC e Mary Bobbitt e Lucy Courtenay, diretora da área de Society Advocacy Engagement e diretora de Goverment and Regulator Relations no CFA Institute, respetivamente, trouxeram para uma mesa redonda, no contexto do evento, as perspectivas do regulador, de um prestador de serviços por excelência aos intermediários financeiros e de uma entidade global com mais de 150.000 membros espalhados pelos quatro cantos do planeta. A moderação ficou a cargo de Miguel Rêgo, CFA, responsável de análise da Funds People Portugal.

LucyDepois de apresentarem as suas visões, em intervenções de 30 minutos, sobre os principais impactos da MiFID II em Portugal, os oradores partilharam uma mesa redonda onde discutiram, entre outros temas, a aplicação de MiFID II nos diversos países europeus em comparação com a RDR no Reino Unido. A RDR foi considera por Lucy Courtenay como mais específica do que a legislação europeia, mas um exemplo do que pode acontecer na Europa continental no rescaldo da implementação de MiFID II. “A RDR é uma legislação muito mais focada na consultoria de investimento a clientes privados. Muitos consultores aproveitaram as novas exigências para se reformarem mais cedo. Mesmo profissionais certificados como CFA teriam que fazer um ‘top up’ na sua certificação. Na altura, o que se verificou foi a queda do número de consultores, mas, desde então, esse número voltou a subir. Se o investidor está mais protegido ou não, acho que é algo que ainda teremos que perceber”, introduziu.

“Eu acredito que em Portugal temos um certo número de particularidades na implementação, mas seguimos a direção geral do regime de MiFID II no que se refere às principais decisões. Nesse sentido, não vejo distinções relevantes entre Portugal e o resto da União Europeia”, comentou Tiago dos Santos Matias. Em concordância mostrou-se Roberto Bilro Mendes, que destacou, no entanto, que “a MiFID II se apresenta quase como um eco da RDR, mas com uma abrangência maior. Concordo com o Tiago. No seu âmbito e métodos de aplicação não existem grandes diferenças em relação a outros países, não obstante as especificidades das leis locais”.

Prevenção ou reação?

RobertoJá questionado se a pesada legislação que configura a MiFID II poderia ter prevenido alguns ou todos os eventos que abalaram a confiança dos investidores na última década, Roberto Mendes, especialista em direito bancário e dos mercados financeiros, mostrou-se reticente. “É uma questão de perspectiva. Não nos podemos esquecer que a MiFID II, tal como a legislação PRIPPs, não são mais do que uma reação do legislador europeu aos eventos de stress que aconteceram nas últimas décadas, sob a alçada da ‘MiFID I’. A questão mais importante a colocar será: poderá a MiFID II prevenir eventos futuros de stress nos mercados? Tendo em conta a natureza reativa da norma, tenho sérias dúvidas. Acredito, isso sim, que, daqui a uma década, estaremos numa mesa redonda, tal como esta, e que as questões colocadas se irão focar nos eventos de stress que ocorrerão durantes os próximos dez anos. Estamos sempre a batalhar por uma cultura de compliance, mas temos uma legislação reativa, pelo que deveríamos tentar também produzir legislação preventiva”, exclamou.

Já Tiago dos Santos Matias mostra-se mais confiante. “É sempre muito difícil dizer com alguma certeza qual será o resultado final de alterações legislativas com esta abrangência, mas se olharmos para o que se passou no mercado português ao longo dos últimos dez anos, ou mesmo cinco anos, não poderia estar mais confiante de que a MiFID II terá a capacidade para prevenir inúmeros eventos do cariz dos que aconteceram no nosso país. A proteção do investidor é muito mais robusta hoje em dia do que era então. Há um rasto de evidência no processo de distribuição que mostra exatamente o que foi vendido ao investidor, quem ofereceu, e se o que foi oferecido era o mais adequado. Neste sentido não poderia estar mais confiante que muitos dos danos perpetrados aos investidores poderiam ser evitados”, comenta.

MaryMary Bobbitt, por outro lado, realça que, na perspectiva do regulador, “é melhor ser proactivo do que preventivo”. A profissional do CFA Institute justifica com um facto: “os mercados estão em constante inovação”. “Podemos falar, por exemplo, de ICOs, blockchain, internalizadores sistemáticos, ou muitos outros desafios à regulação. Os mercados estão sistematicamente a  crescer e muito desse crescimento é em mercados privados. Acredito que eventualmente uma MiFID III possa preencher algumas lacunas em mercados como as fintech. Mas a verdade é que com MiFID II há muito mais salvaguardas. O registo e a prova da melhor execução, o reporte e informação acerca do processo de decisão são algumas das melhorias”, esclarece.   

Conhecimento e competência

As nossas decisões a este nível assentam no pressuposto de que ninguém sabe melhor as suas necessidades do que o próprio indivíduo ou entidade”, introduz Tiago dos Santos Matias. “Cada intermediário financeiro tem o seu modelo de negócio, a sua estrutura, tipo de cliente, mercado alvo... e nesse sentido, é o intermediário financeiro o melhor avaliador de quais as suas necessidades e de qual a melhor forma de implementar as exigências ao nível do conhecimento e competências. Serão as próprias entidades aquelas que nos comunicarão (à CMVM) o processo através do qual satisfarão essas necessidades, se é necessária formação adicional a profissionais que, por exemplo, são certificados como CFA, e julgar se este tipo de certificações cobre os temas relevantes para a execução do seu trabalho. Há que também perceber se as entidades que atribuem as certificações são de confiança e internacionalmente reconhecidas. Esta é uma abordagem muito flexível, mas também muito exigente para os intermediários financeiros, que a CMVM não deixará de sindicar”.

Para Lucy Courtenay esta é uma abordagem válida, mas argumenta a favor da certificação CFA. “Um dos pontos fortes do CFA é que é global. Uma pessoa a fazer o exame no México será avaliado da mesma forma e nos mesmos temas que uma pessoa no Japão. É claro que isto resulta em algumas lacunas a nível da legislação local, mas o Instituto faz uma exigência aos seus membros que conheçam e compreendam o regime em vigor no local onde trabalham e mantenham uma aprendizagem contínua. O que consideramos mais desafiante é enfrentar uma situação em que os testes e exames impostos neste contexto de MiFID são muito triviais e equivalentes a algo que teria um score de 17 no processo CFA. Depois de 700 horas de estudo e uma certificação que é em tudo equivalente a um mestrado, é um pouco ‘aborrecido’ ter que passar por um processo que será o equivalente a um exame escolar. Queremos e achamos que devemos ter maior reconhecimento, mas como o Tiago disse, tem que ser apropriado para cada atividade e tipo de cliente”.

Status quo ou impacto profundo?

Quando questionados sobre quais os segmentos de mercado mais impactados por MiFID II e aqueles onde o status quo se deverá manter, Roberto Mendes e Tiago dos Santos Matias revelaram opiniões distintas. Para o Manager da PwC, o pacote legislativo MiFID II, tal como o pacote legislativo PRIIPs, “ainda levanta mais questões do que aquelas a que responde no que se refere ao âmbito, análise e implementação de todos os requisitos. São muitas exigências com que o intermediário financeiro tem que lidar, são mais de 30 mil páginas, o que, a par com insuficiência de pessoal e muitas vezes de experiência e conhecimentos específicos nos temas concretos, poderá fazer com que o status quo se mantenha em muitas situações. No entanto, no que se refere ao maior  impacto destes pacotes legislativos, considero que o mais relevante passa pela gestão de dados…pelo acesso, criação, manipulação, manutenção e percepção de dados, decorrentes da necessidade de garantir a auditabilidade de todos os processos e procedimentos efetuados pelos intermediários financeiros. Estes dados serão em tal volume que serão difíceis de gerir. Há que que conseguir provar que, em cada passo dado, foi tomada a melhor decisão e também conseguir explicar o porquê da tomada de cada decisão”.

TiagoPara Tiago dos Santos Matias, por outro lado, “é difícil definir um par de áreas onde se verifique maior impacto”. “Eu acredito que MiFID II é todo um novo panorama que está a ser constituído e nós, na CMVM, esperamos que seja implementada na sua plenitude. Não haverão áreas sem qualquer impacto, muito embora existam áreas que sofrerão maior transformação e verão os seus modelos de negócio completamente transformados. O research é uma delas, por exemplo. A quantidade de trabalho que se tem que desenvolver num intermediário financeiro cada vez que se comercializa um produto é enorme, e não devemos subestimar o impacto que a regulação terá. Nós e o mercado temos que estar em constante aperfeiçoamento. Há que reavaliar permanentemente se os procedimentos estão a ser executados e se o estão a ser da forma adequada. Os impactos serão significativos e transversais ao mercado”, acrescentando que “as empresas de investimento deverão compreender os efeitos que o novo quadro normativo traz para o seu negócio e para a indústria como um todo. O panorama alterou-se e todos devem abraçar essa mudança. Pessoalmente estou convicto que as entidades que estejam dispostas e determinadas em se adaptarem serão aquelas que mais beneficiarão da mudança” conclui.