A história do ouro

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(Artigo de opinião de Marius Kleinheyer, professor do Instituto Flossbach von Storch.)

O ouro sempre fascinou toda a gente. Pode ser pelo seu brilho, pela robustez deste metal precioso e ou pela sua maleabilidade. Desde que a Humanidade começou a trabalhar os metais depois da Idade da Pedra, o ouro foi sempre usado como joalharia ou com fins religiosos. Nenhum outro ativo pode ostentar um historial tão impressionante. Ao longo da história da humanidade, o ouro viu ir e vir todo o tipo de poderes, governos e sistemas monetários. A apreciação do ouro está fortemente enraizada na cultura global. É difícil imaginar como será o mundo dentro de 100 anos, mas o facto de o ouro continuar a ser um metal valorizado é uma previsão bastante fiável.

Se o ouro não existisse, teriam de o inventar. Para que um objeto funcione como dinheiro, ou seja, como meio de pagamento geralmente aceite, deve ter quatro características essenciais diferentes: escassez, durabilidade, compatibilidade e divisibilidade. Historicamente o ouro era usado como dinheiro porque é o material que melhor cumpre os requisitos anteriores. O ouro é mais resistente às influências externas do que a prata.

Isto vê-se hoje de uma forma distinta. Evidentemente, o ouro não mudou, mas a visão de quão escasso deverá ser o dinheiro e quem determina a escassez mudou. A história do dinheiro trata-se sempre de quem determina o que é o dinheiro. O dinheiro foi sempre algo mais do que um método de pagamento geralmente aceite e continua a ser um instrumento de poder.

Por isso, há dois pontos de vista fundamentalmente distintos sobre como surgiu o dinheiro. Esta questão não é só de interesse histórico, mas também é útil para esclarecer o que é que constitui a essência do dinheiro. A visão clássica, presente na maioria dos livros, considera que o dinheiro se desenvolveu a partir dos bens intercambiais. Numa sociedade de trocas sem dinheiro, por exemplo, entre dois sócios cada um deve ter os bens que o outro procura e exatamente na quantidade que desejam. Sob estas condições, a troca é extremamente complicada. Portanto, o dinheiro desenvolveu-se como um meio de pagamento geralmente aceite que enfrenta este problema.

O outro ponto de vista é liderado pelo antropólogo americano, David Graeber. Ele é da opinião de que nunca houve trocas nas sociedades tribais. Pelo contrário, o dinheiro desenvolveu-se como uma unidade de medida de crédito na relação entre as pessoas e as autoridades. As dívidas surgiram das obrigações fiscais e dependências pessoais, que foram compensadas pelas autoridades dentro de uma empresa. De acordo com esta postura, o dinheiro também se tornou num meio de financiamento do sistema político.

O ouro tem o seu valor próprio como jóia e foi um distintivo de estatuto antes de se tornar em dinheiro. Em conjunto com as propriedades mencionadas, é lógico que o ouro como o dinheiro teve origem principalmente como um meio de intercâmbio, antes de as autoridades também adotarem este metal como próprio. Se houve alguma autoridade com influência suficiente para determinar o que é o dinheiro... Porque elegeu o ouro? Como ocorreu frequentemente ao longo da história? Porque foi manipulado e falsificado? A história mostra que os governantes estavam demasiado ansiosos por se libertar das restrições do ouro.

Ao longo da história, o dinheiro sofreu uma série de mudanças na sua aparência, desde moedas até papel-moeda e dinheiro eletrónico. Com a vantagem de desmaterializar o dinheiro, desenvolveu-se uma vantagem muito mais significativa: o ouro não se pode produzir artificialmente, o papel-moeda e o dinheiro eletrónico sim. Não obstante, recomenda-se sempre ter precaução no momento de analisar a história do ouro. A manipulação da oferta monetária é tão antiga como o ouro ou como outro método de pagamento. No ano 550 a.C., Croesus, rei da Lídia (localizada na atual Turquia), cunhou moedas de ouro puro em grande escala pela primeira vez na história. Coincidindo com a primeira fraude de moedas provada historicamente na história do mundo. Os espartanos saquearam Samos e após serem subornados com dinheiro falsificado, bateram em retirada.

César popularizou o uso da moeda de ouro no Império Romano. Ele recompensava os seus legionários com avultadas quantias de ouro após ganhar as batalhas. Mais tarde, o Imperador Augusto introduziu um sistema monetário fixo baseado em ouro, prata e moedas de cobre e latão. O valor relativo do ouro face à prata era estabelecido em 1:12.5. Este sistema considera-se a base de todos os sistemas monetários europeus até aos tempos modernos.

Durante as décadas seguintes, o sistema monetário romano sofreu a crise política do Império Romano. O Imperador Nero tinha mais moedas cunhadas que a quantidade de metal precioso existente, desencadeando assim uma das primeiras fases da inflação dos preços dos produtos básicos na história mundial. O seu sucessor, o Imperador Vespasiano, tratou de reajustar o orçamento com políticas austeras e com um aumento de impostos. Entre outras coisas, introduziu um imposto sobre o uso das latrinas públicas. Quando defendeu esta medida disse: Pecunia non olet (dinheiro não tem cheiro). Estas medidas não conseguiram conter o declive do Império Romano a longo prazo. A deterioração da qualidade das moedas continuou até que os comerciantes as recusaram no século III porque o conteúdo do metal precioso nas moedas de prata era extremamente baixo.

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Constantino O Grande introduziu uma nova moeda de ouro chamada Solidus, que se manteve durante o Império Bizantino até à Conquista de Constantinopla no ano de 1453. A Solidus era a moeda líder em toda a Europa, o euro da Idade Média. A palavra soldado precede desta moeda. Etimologicamente este termo vem do adjetivo em latim solidus (sólido, duro, firme). Desde o século VII em diante, as tribos nómadas árabes atacaram o Império Bizantino e imitaram o Solidus com o Dinar dourado.

No primeiro milénio, as tribos germânicas mudaram a economia voltando às trocas. O ouro continuava a ser valorizado durante este período, especialmente como matéria de joalharia e continuava a ser um distintivo de estatuto social, mas também como oferenda em sacrifícios.

Foi Carlos Magno quem introduziu o cunho único de prata na Europa Central, e com o cunho ocasional de moedas de ouro, continuando a tradição dos Imperadores romanos. Ao contrário do Império Bizantino e do mundo árabe, era a prata e não o ouro o material que liderava no centro da Europa durante o primeiro milénio. Em 1045, o marco foi introduzido na Alemanha como unidade de medida para as moedas. Equivalia aproximadamente a metade de uma libra (233,7 gramas). O nome provém da marcação de metais preciosos, que serve para garantir o seu peso e a sua espessura.

A grande invenção foi o dinheiro em papel. Já em 1276, Marco Polo falou sobre a sua experiência com o dinheiro em papel na sua viagem à China. No seu caderno de viagem II Milione, escreveu as suas impressões sobre a criação imperial de dinheiro em Canbalux, atualmente Pequim:

"Quando vemos como está decorado, podemos dizer que o Imperador conhece os segredos da alquimia... Todos as notas estão marcadas com o selo do Grande Khan. Produziu uma quantidade tão grande que poderia comprar todos os tesouros do mundo... Se alguém se negasse a aceitá-lo, era condenado à pena de morte... Mas asseguro que o mundo todo está encantado com o dinheiro em papel... Durante todo o ano, comerciantes muitas vezes vêm em grupos a Canbaluc e trazem ao Imperador pérolas, pedras preciosas, ouro, prata e outras coisas valiosas como telas de ouro e seda... Agora compreendem porque é que nenhum tesouro do mundo pode chegar a ser tão valioso e rico como o Império Tártaro. Não exagero quando digo que os mais poderosos do nosso século não chegam a alcançar a riqueza de Khan”.

Na entrada da Wikipedia sobre as notas, indica-se o seguinte: “Na China, o dinheiro em papel foi abolido em 1402, como ocorreu habitualmente quando os imperadores tinham enormes quantidades de bilhetes impressos . Por isso, houve uma forte inflação na China uma e outra vez”.

A primeira nota oficial na Europa tem a sua origem a meio do século XVII, quando as moedas de cobre escassearam na Suécia. Um banco privado sueco em Estocolmo imprimiu o papel-moeda que já não tinha de ser transferido formalmente com um suporte, mas podia circular de forma informal. Já em 1668, o banco teve de ser transferido para mãos estatais porque tinha emitido mais notas do que as moedas de cobre que tinha aceite. Em 1964 foi fundado o Banco de Inglaterra em Londres para proporcionar ao Rei empréstimos baratos. Como recompensa pelos seus serviços, o banco fez-se com o monopólio da emissão de dinheiro em papel em Londres.

No início do século XVIII o dinheiro em papel chegou à Alemanha. O eleitor Johnann Wilherm von der Pfalz criou a fundação do Banco di gyro d’affrancatione em Colónia. Estava destinado a proporcionar empréstimos ao estado e financiar o esplendor do príncipe. Em 1716, o aventureiro, político e teórico em matéria monetária, John Law introduziu o dinheiro em papel em França com uma atrevida experiência. Law estava convencido de que quanto maior for a quantidade de dinheiro, melhor seria a qualidade de vida. Como ministro das Finanças, tratou de introduzir dinheiro coberto por ações. Quando estalou a bolha do mercado de valores, teve de fugir para França com algumas peças de ouro no bolso.

No decorrer do século XIX, as principais nações industriais do mundo estabeleceram o padrão-ouro. Os EUA começaram em 1792. Enquanto surgiu uma moeda de ouro puro em Inglaterra, em França foi introduzida uma moeda de ouro e prata durante as reformas napoleónicas, que depois se tornaram na base da União Monetária Latina. O Zollverein alemão (união aduaneira) primeiro acordou uma moeda de prata, após a fundação de Reich alemã em 1873 ter introduzido a moeda de ouro. O ouro era o padrão monetário internacional no início do século XX. O uso generalizado do papel-moeda e das moedas em circulação eram de valor fixo, face ao núcleo de ouro da moeda.

A separação do ouro e do dinheiro

A Primeira Guerra Mundial foi o maior desastre do século XX. As consequências da sua força destrutiva na civilização ocidental continuarão a ser palpáveis 100 anos após a finalização da Grande Guerra. Só em 1909 é que as notas do Reich alemão se tornaram na moeda de curso legal. Não obstante, até ao estalar da Primeira Guerra Mundail, o Reichsbank alemão viu-se obrigado a trocar as notas por moedas de ouro conforme a procura. A circulação do dinheiro em papel continuou a ser relativamente impopular na Alemanha. A maior parte do dinheiro, todavia circulava em moedas de ouro.

Em 1913, o Tesouro da Guerra Imperial, que estava armazenado na forma de moedas de ouro no chamado Juliusturm na Fortaleza de Spandau, duplicou. Mas quando estalou a guerra, durou poucos dias. Com uma moeda suportada unicamente pelo ouro, não era possível financiar a totalidade de uma guerra. Em 1914, os estados em guerra aboliram a obrigação de troca de ouro para as suas notas. Temia-se que, durante a guerra, a gente perdesse a confiança no dinheiro em papel e começavam a acumular ouro em casa. A preocupação estava bem fundada, e as medidas certamente eram de esperar, mas também estava dentro das expectativas de que regressariam ao padrão-ouro depois da guerra.

Na Lei de Moedas de 1924, ou seja, depois da hiperinflação que desvalorizou a dívida de guerra financiada pelo gasto de dinheiro, portanto, ainda se postulava: “No Império alemão, a moeda de ouro é válida”. Isto também é notório porque a República Alemã foi proclamada já em 1918, dando a Alemanha uma nova forma de governo. A lei dizia: “Em linha com os esforços de outros países para voltar ao padrão-ouro a partir do estado de inflação, a moeda de ouro também se manteve aqui”.

De facto, as moedas de ouro do Reich foram o meio de pagamento oficialmente válido na Alemanha até 1938. Com a anexação da Áustria, “com o fim de unificar a lei previamente vigente no território do antigo Reich e na Áustria, as moedas de ouro federais austríacas e as moedas de ouro do antigo Reich perderam a sua validade como curso legal”. Por trás estava a estratégia nazi de se apropriar do ouro da população.

A história do pós-guerra ficou marcada pelo acordo de Bretton Woods. Após a Segunda Guerra Mundial, os EUA posicionaram-se como o grande vencedor da guerra e líder do mundo ocidental e, portanto, também pôde determinar o sistema monetário internacional. Os pontos fixos centrais foram o dólar americano e o ouro, que tinham uma relação de câmbio fixa de 35 a onça. Os EUA prometeram aos países membros trocar o dólar por ouro a este rácio.

Os países membros por sua vez comprometeram-se com o FMI, que surgiu do acordo como organização central, ao estabelecimento da paridade com o dólar. Esta paridade só poderá modificar-se em ocasiões especiais e sob consentimento do FMI. O dólar fez-se com o monopólio da taxa de câmbio mundial. Os negócios internacionais controlavam os dólares e os bancos centrais do mundo tinham reservas de dólares em vez de ouro. Por isso, este sistema denominou-se o padrão ouro-dólar.

O problema do Sistema de Bretton Woods era que a emissão de dólares não estava vinculada ao volume de produção do ouro. Especialmente causado pela guerra do Vietname na década de 70, as reservas de ouro dos EUA caíram em relação à oferta monetária em dólares, que tinha aumentado consideravelmente como resultado do financiamento monetário da guerra.

Como resultado, o dólar sobrevalorizou-se face ao ouro, e os EUA não podiam cumprir com a sua promessa para com os países membros, liderados por França, com o ambicioso presidente Georges Pompidou vendendo ouro a 35 dólares a onça. Após um ataque às reservas de ouro dos EUA por Pompidou, o presidente americano, Richard Nixon anunciou num famoso discurso televisivo a 15 de agosto de 1971 que estava a virar as costas à convertibilidade do dólar em ouro. Esta decisão marcou o começo do sistema monetário ainda vigente, com taxas de câmbio mais ou menos livres entre as moedas nacionais. Não obstante, o dólar pôde defender a sua posição como moeda de reserva internacional.