Na opinião de Francisco Falcão Castro, responsável de Investimentos da Hawkclaw Capital Advisors, "a curto prazo, um pico de inflação seguido de uma recessão nos EUA parece quase inevitável, mesmo que se avance com negociações".
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COLABORAÇÃO de Francisco Falcão Castro, responsável de Investimentos da Hawkclaw Capital Advisors.
As declarações provocatórias sobre a anexação da Gronelândia e do Canadá, a intenção de sair da NATO e o desrespeito por aliados marcaram o início do mandato errático de Donald Trump desde 20 de janeiro. No entanto, o ato mais impactante da sua administração foi apresentado na semana passada.
Após um longo discurso sobre a necessidade de rebalancear o sistema de comércio internacional, o tratamento injusto dos parceiros comerciais para com os EUA e o renascimento da indústria americana, Trump revelou a sua nova política comercial, que se consubstancia na aplicação de uma tarifa base de 10% a todos os produtos importados para os EUA, assim como, de tarifas recíprocas de magnitude superior a aplicar aos países que, segundo ele, beneficiam injustamente do comércio com os EUA. Mais de uma centena de países foram afetados por estas medidas, pelo que o escalar das tensões deverá ser inevitável. A China já retaliou com a imposição de tarifas de igual valor (34%) e ainda com restrições à exportação de minerais raros. Entretanto, esta semana, representantes dos estados-membros da União Europeia reunirão no Luxemburgo para decidir a resposta, enquanto o Japão procede a uma consulta junto da Organização Mundial do Comércio (OMC) antes de uma tomada de posição. Esta guerra comercial que agora se agudiza comporta um grau significativo de incerteza em termos económicos e financeiros. Para melhor compreendermos os riscos, será relevante analisar o racional e a metodologia subjacentes a esta medida protecionista, assim como as suas consequências noutras épocas da nossa história.
Donald Trump justifica a aplicação de tarifas como ferramenta de leveling playing field em termos de fluxos comerciais, sendo que baseou a sua argumentação na reciprocidade. Por exemplo, Trump alega reciprocidade aplicando uma tarifa a desconto de 20% à UE afirmando que esta aplica tarifas de 39% sobre produtos americanos, valores contrariados por dados reais, que indicam uma tarifa média ponderada de apenas 1,7% em 2024 (OMC). Ignora as taxas reais, aplicando uma fórmula de cálculo para apurar o valor das tarifas que considera os défices comerciais considerando apenas o fluxo de produtos e excluindo dessa variável os serviços. Por tal, várias das situações apresentadas como deficitárias em termos comerciais são de facto superavitárias a favor dos americanos. Esta abordagem pouco honesta reflete uma ideologia bizarra de que as importações são, por natureza, algo nefasto, e as exportações algo positivo. Esta visão de soma zero ignora as complexidades do comércio internacional, nomeadamente o facto de muitos dos excedentes comerciais serem reinvestidos na economia americana para além de permitirem margens de lucro elevadas a várias empresas americanas, um maior nível de especialização em determinados setores e uma maior eficiência da cadeia produtiva.
Em termos históricos, a imposição de tarifas gerou mais externalidades negativas do que positivas para o país que as impõe, podendo ser descrita a sua aplicação por uma simples frase: “Tariffs are like painkillers — useful for a crisis, dangerous if used chronically”. No curto prazo, proporciona um alívio económico ao proteger os produtores nacionais da concorrência externa por via de uma vantagem artificial de preço resultando num aumento da produção interna e numa subida do emprego nos setores protegidos assim como num acréscimo temporário de investimento, por contraponto com diversos efeitos negativos no longo prazo. As empresas protegidas tendem a perder o incentivo para inovar ou melhorar a eficiência, conduzindo à estagnação. Além disso, as retaliações por parte dos parceiros comerciais afetados podem prejudicar outros setores orientados para a exportação. Por fim, a manutenção de preços elevados reduz o poder de compra das famílias, o que pode comprometer o crescimento económico global.
Por forma a exemplificar, veja-se o caso da imposição da lei tarifária Smoot-Hawley (1930), aprovada no início da Grande Depressão nos EUA, que tinha como objetivo proteger os agricultores e industriais norte-americanos da concorrência estrangeira, através de um aumento significativo das tarifas sobre as importações. Foram aplicadas tarifas a mais de 20.000 produtos importados, com taxas que, em alguns casos, ultrapassaram os 60%, abrangendo bens agrícolas, têxteis e artigos manufaturados. No entanto, esta medida protecionista teve efeitos contraproducentes, levando a um número significativo de países visados a retaliar. Como consequência, as exportações dos EUA caíram mais de 60% entre 1929 e 1933, e o comércio global diminuiu mais de 50%. Outros exemplos de insucesso de políticas tarifárias ocorreram no Brasil (política protecionista pró-industrialização que culminou com desaparecimento do Cruzeiro e crise da dívida soberana nos anos 80), na Índia (cujo regime de pré-liberalização iniciado nos anos 50 gerou um período longo de estagnação) e nos EUA (curiosamente, no primeiro mandato de Trump, em que em resposta à imposição de tarifas a China impôs tarifas ao setor agrícola americano levando quase ao colapso dos produtores de soja).
Segundo exemplos históricos, as tarifas podem resultar, mas apenas em condições muito específicas — sobretudo quando são temporárias, aplicadas de forma estratégica e acompanhadas por reformas internas e investimento na competitividade (casos da Coreia do Sul e do Japão no pós-guerra). Quando utilizadas para proteger indústrias-chave, enquanto se implementam políticas de inovação ou de qualificação da força de trabalho, podem oferecer o tempo necessário para melhorias estruturais. Contudo, na maioria dos casos, as tarifas acabam por causar mais danos do que benefícios. Frequentemente prejudicam o próprio país que as impõe, provocando aumentos na inflação, reduzindo o rendimento real disponível das famílias e perturbando as cadeias de abastecimento globais. Além disso, tarifas motivadas por interesses políticos podem deteriorar relações internacionais e levar ao isolamento diplomático e económico. Em suma, diria que o Liberation Day poderá tornar-se no Regression Day com grandes implicações para a ordem económica internacional e o equilíbrio geopolítico. A curto prazo, um pico de inflação seguido de uma recessão nos EUA parece quase inevitável, mesmo que se avance com negociações. No longo prazo, a história poderá não se repetir, mas deve certamente rimar, pelo que será prudente realinhar objetivos e estratégias para navegar este período volátil.