As vertigens dos mercados

Jorge Silveira Botelho BBVA_noticia
Jorge Silveira Botelho. Créditos: Vítor Duarte

TRIBUNA de Jorge Silveira Botelho, CIO da BBVA AM Portugal.

De todas as múltiplas crises que já tivemos ao longo deste novo milénio, esta última é seguramente a pior de todas, simplesmente porque todas as outras já as superámos, ao ponto da memória nos trair para nos proteger das más recordações.

Já poucos se lembram que, em plena crise dot.com em 2000, uma ação da Apple valia menos de 0,23 dólares (137,59 dólares a 20/05/2022), que em março de 2009 durante a crise Subprime as ações da Microsoft transacionavam na casa dos 15 dólares (252,56 dólares a 20/05/2022), que em plena crise soberana as ações da Corticeira Amorim valiam em mercado menos de 70 cêntimos (9,95 euros a 20/05/2022), e as ações da Solaria Energia valiam 30 cêntimos (21,86 euros a 20/05/2022), que no final de 2018 as ações da Tesla estavam abaixo dos 50 dólares (663,90 dólares a 20/05/2022) ou que em plena pandemia as ações da Daimler valiam menos de 18 euros (63,69 euros a 20/05/2022), enquanto as ações da Gerdau cotizavam a 8,64 reais (27,96 reais a 20/05/2022).

As crises são o que são, mas proporcionam sempre oportunidades porque na sua grande maioria aceleram tendências, como na crise dot.com se abriu espaço para a digitação, como na crise de 2008 se acelerou o processo de globalização, como a crise soberana solidificou o projeto europeu, como a pandemia veio provocar um choque tecnológico sem precedentes ou como a recente invasão da Ucrânia veio acelerar de forma dramática a transição energética.

Atualmente, os mercados financeiros globais sente-se encurralados, porque por um lado, sentem-se aprisionados pelos tentáculos da inflação, mas por outro encontram-se manietados pelos Bancos Centrais, que ao deixarem demasiada aberta a possibilidade de subidas de taxa de juro, através de uma retórica demasiado inflamada, parece que se esqueceram de como a economia ganhou uma enorme sensibilidade à política monetária...

No entanto, as recentes correções dos mercados financeiros globais, já ilustram uma maior preocupação com os riscos de recessão do que propriamente com os riscos de inflação, como atestam bem os recentes movimentos de consolidação nos mercados de taxas de juro. De facto, a desaceleração da inflação torna-se cada vez mais evidente, com as descidas de preços dos metais industriais, com a gradual normalização das cadeias de abastecimento em alguns setores e com o arrefecimento gradual do mercado imobiliário, tudo se traduzindo num ajustamento gradual das expetativas de inflação 5y5y forward, tantos nos EUA com na Europa.

Não faz muito sentido os mercados quererem descontar uma subida prolongada da inflação, depois de descontarem um erróneo sobreaquecimento da atividade económica alicerçado em múltiplos choques da oferta, onde do lado da procura o único choque que objetivamente presenciámos foi o de uma perda efetiva de poder de compra dos consumidores, com a descida dos salários reais. Mas querer-se agora avançar para a narrativa de um risco súbito de recessão, parece-nos também despropositado por três ordens de razões:

Em primeiro lugar, a dinâmica endógena da atividade economia neste pós pandemia está a ser subestimada, não só pela normalização de alguns hábitos de consumo, mas também pelos efeitos disruptivo que a tecnologia veio trazer. Existem uma atividade adormecida, que se traduz por inúmeros projetos de investimentos que já não carecem de qualquer tipo de aprovação de financiamento, mas que estão simplesmente à espera de uma maior normalização das cadeias de abastecimento e que vão ter um impacto transversal na atividade económica. Sejam eles em infraestruturas, na transição energética, na conectividade, na mobilidade, na digitalização de serviços etc. Ainda ontem tivemos a publicação do inquérito de atividade setor industrial alemão, o IFO, que comprova bem a resiliência da economia germânica e a melhoria das cadeias de abastecimento, apesar dos constrangimentos da guerra. Por outro lado, é preciso ter algum enviesamento na análise para se querer antecipar uma recessão quando tantas indústrias e serviços, de grandes e pequenas empresas, continuam ativamente à procura de mão-de-obra…

Em segundo lugar, os mercados financeiros já têm obrigação de saber lidar com o dito por não dito dos Bancos Centrais, que tão depressa passam de pacientes a impacientes, como o contrário. Nesta altura estes já não podem subestimar as vertigens dos mercados, onde a fragmentação financeira, o agravamento das condições creditícias, podem ter um impacto na atividade económica. Se de facto, a inflação começar a desacelerar durante os próximos meses, não vai faltar muito tempo para que aqui e acolá comecem a surgir uns comentários mais moderados sobre as perspetivas de taxas de juro, tal e qual como os que ouvimos no final de 2018: will be “patient” -19/12/2018, Jerome Powell.

Por fim, para entramos numa recessão era preciso conseguir fazer desaparecer grande parte do efeito riqueza que ocorreu com a forte subida dos preços do mercado imobiliário durante a pandemia. Mas grande parte desse rerating do mercado imobiliário não teve nada a ver com taxas de juro, mas sim com uma alteração estrutural das preferências e das necessidades dos consumidores. Taxas de juro mais elevadas vão arrefecer parcialmente o mercado imobiliário, mas sem terem um impacto material nas suas dinâmicas, tanto mais que persiste escassez de oferta e os riscos de execuções e de vendas forçadas são diminutos, fruto dos elevados níveis de emprego e dos baixos valores dos empréstimos nos livros dos bancos face ao atual valor de mercado das habitações hipotecadas. Normalmente o efeito de riqueza no mercado imobiliário tem um impacto na propensão ao consumo privado através do tempo, dados os elevados níveis de detenção de habitação própria no Ocidente.

Infelizmente estamos numa fase em que os intervenientes dos mercados financeiros perdem demasiado tempo em debater o acessório e esquecem-se que o que faz correr o mundo é a essência das coisas.

Apesar de todos os constrangimentos destra guerra inusitada, este pós pandemia vai marcar mais profundamente a nossa civilização, na medida em que, o salto tecnológico onde irrompemos, ao nível da transição energética, digitalização e do uso transversal da inteligência artificial, vai mudar significativamente as nossas preferências e estruturalmente os nossos hábitos de consumo.

Neste contexto, para quem tem um horizonte temporal de longo prazo e não se deixa impressionar com o frenesim da volatilidade de curto prazo, tal como no passado, estas são sempre as melhores alturas para se identificarem as melhores oportunidades de investimento, independentemente das vertigens dos mercados.