Numa altura em que a política per si não pode ser desagregada da política monetária, como analisar as ações do BCE? Jorge Silveira Botelho, CIO da BBVA AM Portugal, fala-nos disso mesmo, em véspera de reunião do BCE.
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A segunda volta das eleições francesas pode ainda reservar alguma emoção, mas no essencial é muito improvável que Marine Le Pen consiga, no espaço de 15 dias, mais do que dobrar a sua votação da primeira volta.
Mas, por quanto tempo mais iremos ter direito a um céu limpo sem nuvens? Esta é a derradeira questão em que todos nos devemos agora centrar.
O risco de um “acidente político” na Europa está ainda longe de estar completamente afastado, uma vez que os temas recorrentes da dívida grega, das eleições alemãs e sobretudo as próximas eleições italianas (algures durante o próximo ano), são eventos que mantêm a Europa em cheque.
Enquanto não nos focarmos em desviar o percurso da água, procurando no essencial conferir uma maior legitimidade política e social ao projeto europeu, corremos o risco que a atual inércia política devolva cada vez mais tração ao fenómeno do populismo e faça com que a “água mole em pedra dura tanto bate até que fura”.
É neste contexto que devemos enquadrar o papel do Banco Central ao longo desta crise e identificarmos qual tem sido o verdadeiro alcance da sua política monetária e a eficácia dos instrumentos com que a prossegue.
A análise que devemos começar por fazer é deixar de fingir que existe uma imaculada independência entre a ação do Banco Central e o poder político instituído. Hoje, a política monetária de um bloco como a Zona Euro tem um alcance global, no sentido em que a implementação dessa política afeta diretamente os seus atuais 19 membros, mas também porque a dimensão da sua economia interfere significativamente com os equilíbrios macroeconómicos globais.
Basta simplesmente pensar nas implicações e nos riscos subjacentes ao programa de compra de ativos, uma vez que, quem continua na prática a financiar os países do Sul ao abrigo do sistema de compensação target 2 é o estado alemão através do Bundesbank. Ora, esta realidade só acontece porque de alguma forma o poder político assim o consentiu.
Outra análise que deriva diretamente desta dimensão política do uso dos diferentes estímulos monetários, é o de entender que existem distintos calibres inerentes a cada um dos instrumentos utilizados, mas acima de tudo, diferentes fins.
Quando abordamos o papel do Quantitative Easing num estado federado como o americano, não é certamente a mesma coisa quando o analisamos numa Europa politicamente fragmentada. A ausência de mecanismos potentes que defendam a Europa de um evento de risco interno, faz com que o programa de compra de ativos desempenhe um papel que está para além da sua função estritamente monetária. Este assume também uma função política decisiva ao fomentar uma inequívoca partilha de riscos, atenuando fenómenos de contágio e promovendo uma maior integração financeira. Isso explica que, apesar da elevada incerteza geopolítica, a confiança dos agentes económicos sobre o ciclo económico não dá sinais de esmorecer antes pelo contrário. Discutir o Italexit pode ainda parecer prematuro, mas os riscos associados à expressão que hoje tem o movimento “5 Estrelas” e a “Liga do Norte”, ambos eurocéticos e que representam no seu conjunto quase 45% das intenções de voto, levanta sérias questões sobre a relevância da permanência do papel do programa de compra de ativos por mais algum tempo.
Em contrapartida, o papel da política monetária convencional parece estar a ficar adulterado. O abuso prolongado de taxas de juro negativas, para além de ser questionável e perverso o seu atual contributo económico, começa a ganhar fama de manipulação cambial numa região que apresentou em fevereiro um superávit recorde da balança de transações correntes (360,2 mil milhões de euros, equivalente a 3,4% do PIB). A julgar pelos sucessivos comentários proferidos pela nova ordem política americana, depreende-se que esta é cada vez mais sensível a este assunto e que dificilmente vai continuar a reagir pacificamente a um agravamento do hiato de taxas de juro entre os dois blocos comerciais, procurando garantir a competitividade da sua economia.
Quando os membros do BCE se reunirem esta semana para discutirem a sua política monetária, entre as duas voltas das eleições francesas, não vai ser preciso ser adivinho para perceber que nenhuma alteração de substância irá ser transmitida publicamente. Mas dentro das quatro paredes, os protagonistas sabem que a inflação em abril vai voltar para a vizinhança dos 2%, que a inflação core vai estar próxima de 1% e que os dados económicos continuam a apontar para uma firme recuperação da atividade económica na Europa. Uma vez que a substância da discussão no seio do BCE se alterou de um cenário de deflação para um cenário de inflação moderada, faltando apenas precisar se a intensidade do fenómeno inflacionista é de 1% ou de 2%, a pressão para se implementar uma estratégia credível de exit é cada vez mais urgente. Esta situação vai acabar por forçar o debate interno sobre o forward guidance e a gradual remoção dos estímulos, em face da necessidade absoluta em enquadrar e destrinçar o risco político do risco económico. Torna-se por isso evidente, que os objetivos e a lógica subjacentes à utilização da política monetária na Zona Euro é mais complexa e muito distinta dos EUA, ou seja, a lógica sequencial de primeiro o tapering e depois a subida das taxas de juro subjacente ao modelo americano, pode não fazer nenhum sentido quando aplicado a uma região que parte com uma taxa de juro de depósito negativa de 0,40% e onde ainda permanece um elevado risco interno político.
Aqui, na Europa, não deve haver nada de muito sequencial quanto ao uso programado dos diferentes instrumentos de política monetária, nem tão pouco de arbitrário, tudo tem de continuar a ser discricionário, ou seja, feito e pensado à medida das circunstâncias e, como bem sabemos, estas vão mudando…