Jorge Silveira Botelho, CIO da BBVA AM Portugal, fala-nos de um crime aparentemente piedoso que, no final de contas, terá consequências muito pouco ortodoxas.
Registe-se em FundsPeople, a comunidade de mais de 200.000 profissionais do mundo da gestão de ativos e património. Desfrute de todos os nossos serviços exclusivos: newsletter matinal, alertas com notícias de última hora, biblioteca de revistas, especiais e livros.
Para aceder a este conteúdo
Aqui na Europa, alguém roubou o carro do gestor de obrigações com a carteira dentro do porta luvas. A grande dificuldade que subsiste para a resolução deste “crime” é que ninguém fez queixa, nem tão pouco precisou a data de ocorrência dos factos. O que consta nos corredores é que existe complacência e algum consentimento do gestor. Na verdade, em face da boa fama que usufruiu nos últimos anos, o gestor tem sido vago nas análises dos factos e omisso nas conclusões, denotando falta de vontade ou de coragem, para reconhecer que foi roubado e já há algum tempo...
Na passada quinta-feira, o presumível autor do carjacking fez questão de afirmar, que ainda pretende dar umas voltas durante mais alguns meses. Teve ainda a gentileza de dizer ao gestor que não se preocupasse, porque se fosse necessário voltava a encher o depósito, as vezes que fosse preciso. No entanto, omitiu que o tipo de aditivos que compõe no máximo em 33% esta gasolina, encontram-se praticamente esgotados e há Estados que querem proibir a sua comercialização abusiva...
Sem medir bem as consequências, o Gestor impotente e receoso de ser reduzido à sua insignificância, continua a não ver outra alternativa senão continuar a embarcar nesta história, mesmo sabendo que agora se trata literalmente de uma história sem retorno.
Existem três grandes erros de percepção que estão subjacentes a esta pequena história, que de um momento para o outro a podem tornar menos agradável...
O primeiro é que a intenção do presumível suspeito de carjacking não era de simplesmente furtar o carro, mas sim de o levar para posteriormente devolver em melhor estado. O intuito era acima de tudo proteger o dono e salvaguardar os seus bens, na medida em que com a crise o gestor ira acabar mesmo por perder o carro. O único problema é que este bom ladrão ao levar o carro acabou também por levar tudo o que lá estava dentro.
O segundo erro de percepção é que o “bom ladrão”, com o seu feitio altruísta excedeu em muito as suas competências, abusando recorrentemente do crime de carjacking.
O drama reside agora no facto de que, estando resolvido o problema principal, o da crise económica e o da fragmentação financeira, o “bom ladrão” parece iludido em perseguir uma estratégia de redenção total, assente em banir qualquer sofrimento. O facto é que isso não é empiricamente exequível e os danos colaterais já são visíveis para os mais avessos ao risco e os reformados, que confrontados com a magia de uma vida mais longa, vivem agora em agonia permanente por não conseguirem gerar um rendimento real suficiente para prosseguirem com as suas vidas.
Por fim, o último erro de percepção é o do gestor de obrigações que ao beneficiar da situação, continua sem se querer assumir como uma vítima de carjacking, ignorando o risco da sua carteira se poder resumir a fragmentos de papel.
Este “crime piedoso“ continua visivelmente a acentuar a irreversível partilha de riscos e a consequente simbiótica contaminação do risco de crédito soberano. Mas ainda mais importante, é que continua a fazer subir as expetativas de inflação, numa altura em que estas se começam também a estender para os anos vindouros. Não faz por isso nenhum sentido, que o gestor de obrigações prossiga no fingimento que tem a situação sobre controle, porque irremediavelmente já não a tem...
Infelizmente, a experiência diz-nos que são muito raros os casos de carjacking em que no final se recupera o carro em boas condições. O mais certo é encontrarmos este carro submergido num lago, onde a água se encarregou de apagar todos os vestígios no interior e a chapa enferrujou.
Dada a elevada probabilidade de ocorrência desta situação, não há que ter medo em denunciar o “crime piedoso” e livrar-se praticamente de todos os ativos de taxa de juro de médio e longo prazo. Muitos destes ativos já perderam a pureza e as caraterísticas intrínsecas para serem considerados um ativo de refúgio, deixando de deter a capacidade de poderem pagar uma ínfima parte do custo de oportunidade da inflação, no curto, no médio e no longo prazo.
No final, todos sabemos como estas coisas terminam e quem insistir em ser conivente com este “crime piedoso”, a seu tempo, será interpelado pela sua consciência:
Porque é que não contaste logo que também foste vítima de carjacking?