Não façam ondas…

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Jorge Silveira Botelho. Créditos: Vítor Duarte

Em dia de mais uma reunião da Fed, Jorge Silveira Botelho, CIO da BBVA AM Portugal, fala da necessidade de se acabar com o tabu que se criou à volta da nova política monetária convencional.

A economia assemelha-se a um enorme bombardeiro carregado de dívida que voa rente à água. Qualquer ondulação mais forte pode desestabilizar o avião. Para além dos cuidados a ter com a ondulação marítima provocada pela alteração das marés, cabe aos pilotos, os Bancos Centrais, aliviar a carga muito gradualmente, evitando que as explosões causem literalmente muitas ondas.

Depois da crise de 2008, o regime da política monetária alterou-se dramaticamente com o incremento da sensibilidade da economia à política convencional de taxas de juro. A razão que esteve por detrás desta alteração do regime monetário, foi a pronunciada subida do endividamento de 276% sobre o PIB em 2007 para 355% em 2020 (Fonte: IIF), o que tem deixado sem opções os Bancos Centrais.

Entrámos definitivamente num ciclo vicioso de dívida e de deflação, onde o excessivo endividamento não é muito mais do que a tradução do excesso de capacidade a nível global. Quando se quer falar de inflação é preciso primeiro entender as consequências deste novo regime da política monetária e não confundir o que é um movimento cíclico de subida de preços por via efeito base, (como aquele que vamos presenciar esta semana nos EUA com a publicação do deflator core do consumo privado), com a incapacidade política, económica e social, de se remover o excesso de capacidade estrutural que a pandemia ainda veio mais agravar...

A excessiva dependência do endividamento ao ciclo económico tornou praticamente obsoleto e esgotado o instrumento de referência de política monetária tradicional, a taxa de juro diretora. Hoje, aquilo que é convencional em matéria de política monetária são os incrementos ou as reduções do balanço dos Banco Centrais e o que passou a ser não convencional é a tradicional política monetária de taxas de juros diretoras. Daí que perdeu qualquer sentido falar-se de taxas de juro diretoras e ganhou extrema relevância discutir -se a política monetária ao nível das taxas de juro reais de longo prazo.

Atualmente o foco dos Bancos Centrais é manter em terreno negativo ou próximo de zero as taxas de juro reais de longo prazo nos próximos anos, de forma a tentar processar da forma mais tranquila possível, esta viagem longa de restruturação passiva da dívida global.

O grande risco que existe para a economia não é a inflação, mas sim uma má gestão das expetativas sobre as taxas de juro reais, como seja uma subida indesejada das taxas de juro nominais de longo prazo. Mas o problema é que este movimento pode ocorrer, não só por excesso de zelo como também por displicência.

Nesse sentido, e numa semana em que vamos ter mais uma reunião da Reserva Federal Americana, é relevante acabar com o tabu que se criou à volta da nova política monetária convencional, o tapering, ou seja, o jargão financeiro que é dado à redução do programa de compra de ativos do Banco Central.

Apesar de não ser expetável que seja desta vez, esperemos que esta seja a última reunião em que este tabu se mantenha. Deixou de fazer sentido continuar a fingir que não é preciso discutir a necessidade de se afinar a política monetária, quando o ritmo de vacinação acelerou de forma inequívoca nos EUA e a economia prepara-se para crescer cerca de 7% este ano…

Quanto mais depressa a FED anunciar o fim do tabu da discussão sobre o tapering, melhor os mercados financeiros o podem absorver. Mas quanto mais tempo se continuar a fingir que essa decisão ainda não está em cima da mesa, maior será o risco de overshooting das taxas de juro reais de longo prazo e maior poderá ser a volatilidade nos mercados financeiros.

Se realmente os Bancos Centrais se focarem no essencial, ninguém vai ter receio de se confrontar com alguma volatilidade, mas se forem demasiado complacentes, podem gerar ondas desnecessárias que coloquem em risco esta longa travessia que ainda vamos ter de percorrer.

Continuo em crer, que a agenda dos Bancos Centrais é garantir o sucesso desta travessia, onde a irremediável supressão do ciclo monetário tradicional, que terá espaço apenas para pequenos acertos, foi substituído pelo controle das expetativas das taxas de juro reais de longo prazo através da gestão balanço.

Neste contexto, e esperando que a agenda dos Bancos Centrais não fique ainda mais comprometida, este novo regime monetário vai continuar a dar um enorme suporte aos ativos reais, designadamente aos negócios que explicitamente ou implicitamente geram cash-flows, tanto ao nível dos mercados acionistas globais como ao nível do mercado imobiliário.

O importante mesmo é não fazer ondas…