Navia Aut Caput

Jorge Silveira Botelho BBVA
Vitor Duarte

Navia Aut Caput,  na tradução do latim, Navio ou Cara, representava os dois lados da moeda romana, a qual os romanos lançavam ao ar para resolverem uma contenda.

A inspiração do uso desta moeda deve-se ao deus romano Janus, que era uma figura mitológica com duas caras. Era o Deus dos inícios, das decisões e das escolhas difíceis. Significava a mudança, a transição, o passado e o futuro, o entrar e o sair. Curioso foi que a este Deus também lhe foram atribuídas as invenções dos botes e dos navios. Deste modo, o delegar de uma tomada de decisão à sorte do  Navia Aut Caput surgiu para os romanos de forma natural, como se tratasse de uma vontade divina.

Desafortunadamente para nós investidores, cada vez são menores as nossas opções e tão pouco a nossa sorte está entregue a um destino divino, porque na realidade a nossa sorte está depositada na moeda cunhada pelos alquimistas dos Bancos Centrais. Nesta semana e na próxima vamos ter a última rodada  deste ano das reuniões destas autoridades monetárias a nível global, onde se destacam duas das mais importantes reuniões, a do Banco Central Europeu (BCE) esta semana e a da Reserva Federal Americana (FED) na próxima.

Muitos analistas  entretêm-se na discussão sobre as diferentes abordagens e resultados possíveis destas duas reuniões, no que toca à dimensão dos seus estímulos, se vão ou não introduzir novos instrumentos, ou se vão melhorar as condições daqueles que já existem. Enfim, vai-se discutir nos próximos dias afincadamente sobre a panóplia de opções disponíveis, enquanto analistas e investidores fazem as suas apostas cegas de Navia aut Caput, para depois constatarem se as decisões tomadas pelos Bancos Centrais os surpreenderam ou não.

Mas em bom rigor, estas reuniões passaram a ser cada vez menos relevantes, na medida em que, já não há uma cara ou uma coroa para se escolher, há simplesmente uma só cara que se encontra cunhada em ambas as faces da moeda que os Bancos Centrais imprimem, a cara aterradora da dívida. Essa é aquela cara assustadora, que obriga a que haja sempre e irremediavelmente mais estímulos, acabando por determinar o comportamento de todas as distintas classes de ativos.

Segundo os dados recentemente publicados pelo Institute of International Finance, a dívida global (pública, famílias, setor privado e setor financeiro)  no final deste ano deverá ascender a 277 biliões de dólares, o equivalente a 365% do PIB. Em contrapartida, nos países desenvolvidos este valor poderá abeirar-se da vizinhança dos 450% do PIB no final deste ano, antevendo-se que no próximo ano deverá continuar a subir, quer em termos absolutos, quer em termos relativos...

A dimensão da dívida tornou-se num risco sistémico desmesurado e praticamente insolúvel para os Bancos Centrais e já não é preciso esperar pela “mise en scène” das suas reuniões para se entender isso. Estes simplesmente deixaram de ter uma alternativa credível e independente para a condução da política monetária, limitando-se a ter que a continuar a praticar, cheia de “falinha mansas” e estruturalmente expansionista.

A pandemia não veio para facilitar, nem o trabalho dos Bancos Centrais nem tão pouco dos investidores,  e cristalizou ainda mais a dicotomia agonizante que está presente nas dinâmicas da poupança. Hoje é visível o confronto entre esta ausência estrutural do custo de oportunidade de deter moeda e a necessidade de financiar uma longevidade humana que se acerca rapidamente da fasquia secular.

Para nós investidores que não gostamos de deixar a nossa sorte ao acaso, temos de reconhecer as nossas limitações em contrariar o efeito asfixiante que esta moeda de duas caras idênticas está a produzir. Depois de esgotada estruturalmente a rentabilidade real nas obrigações de longo prazo, não é preciso atirar uma moeda ao ar para se perceber o que se vai seguir.  Quanto mais depressa admitirmos que a pandemia acelerou globalmente as dinâmicas do endividamento e consequentemente intensificou os riscos de deflação, mais depressa compreendemos que vamos entrar numa nova fase de experimentação de política monetária, onde vamos medir a capacidade dos Bancos Centrais de continuarem a engrossarem os seus balanços. Recorde-se que o Japão, que há 30 anos percorre este caminho, o balanço do seu Banco Central atingiu no final de novembro o valor máximo de 134,2% do PIB (fonte: Bloomberg),  em contraste o BCE e a FED estão “ainda”  em 63,4% e 34,3% do PIB, respetivamente...   

Nos próximos anos  os Bancos Centrais vão presumivelmente assumir que até é normal e compreensível que persista alguma inflação nos ativos reais, na medida em que, o custo nulo de deter moeda vai ser estrutural. O desejoso retorno da inflação é uma miragem, sendo que a inflação dos ativos reais vai ser a derradeira esperança de se reverter, ou pelo menos de se estabilizar, a espiral da dívida e da deflação. Esta vai ser provavelmente a última chance que temos para que num futuro ainda distante, possamos voltar a escolher em consciência entre Navia aut Caput.