COLABORAÇÃO de Jose Luis Calvo, cofundador e diretor de IA da Diverger.
A União Europeia apressou-se a criar um quadro regulamentar para a inteligência artificial, conhecido como o AI Act, que entrará em vigor no próximo ano. Poderá a Europa manter a sua influência regulamentar a nível mundial, ou poderá esta regulamentação ter efeitos negativos no desenvolvimento da IA na região?
O Efeito Bruxelas
O termo Efeito Bruxelas foi cunhado por Anu Bradford para descrever a forma como a UE estende a sua influência regulamentar para além das suas fronteiras. Um exemplo claro é a adoção da entrada USB-C em dispositivos móveis, uma normativa europeia que foi globalmente implementada por várias multinacionais para evitar a fragmentação das suas operações.
Outro exemplo significativo é o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (GDPR, na sua sigla em inglês). Empresas como a Meta, Google e Microsoft adaptaram as suas políticas de privacidade a nível mundial para cumprir esta regulamentação, mostrando como a Europa consegue impor padrões internacionais através do seu poder regulamentar.
No entanto, nos últimos anos, os principais índices de ações dos EUA e da Europa distanciaram-se, coincidentemente, desde o acordo do GDPR. Este distanciamento também se reflete noutras métricas, como a da produtividade1.
Evolução dos índices de ações:
A posição tecnológica da Europa
Uma causa provável é o facto de a UE enfrentar um grande desafio no setor tecnológico. Apenas duas empresas europeias, a ASML e a SAP, estão entre as 30 empresas de maior capitalização em bolsa2, e a sua liderança em setores como a aeronáutica e a supercomputação depende, em grande medida, do investimento público. O investimento privado em IA na Europa é significativamente menor em comparação com o dos EUA e o da China, o que reflete o menor número de novas empresas dedicadas a esta tecnologia na região3.
Investimento privado em IA por áreas geográficas (de 2013 a 2022):
Os novos modelos de linguagem, o atual estado da arte em IA, requerem grandes investimentos de capital, limitando o seu desenvolvimento a poucos agentes globais. Na Europa, o caso destacado é a Mistral, uma start-up francesa que desenvolveu um modelo de linguagem competitivo. Apesar da sua origem europeia, grande parte do capital da Mistral provém de investidores norte-americanos4, o que ilustra a dependência da Europa de capital estrangeiro para avançar neste campo.
Desafios da regulamentação tecnológica
Uma das dificuldades da regulamentação neste âmbito é que esta pode desfasar-se rapidamente devido à velocidade do desenvolvimento tecnológico. Por exemplo, a proposta para o regulamento europeu da IA apresentada em abril de 2021 já estava desatualizada em alguns aspetos quando o Parlamento Europeu chegou a um acordo em dezembro de 2023 devido ao surgimento de modelos de linguagem de grande escala, materializados no ChatGPT.
O AI Act introduz controlos rigorosos nos sistemas de alto risco, semelhantes aos do setor farmacêutico. Apesar de argumentar que é uma regulamentação baseada no risco, o AI Act também considerou determinados modelos de IA como sendo de alto risco, quando treinados com uma grande capacidade de computação (1025 FLOP), uma medida que pode ficar obsoleta em poucos anos.
Em geral, estas medidas contam com o apoio das grandes tecnológicas, que beneficiam das barreiras de entrada que protegem a sua posição no mercado e podem desincentivar a criação de novas empresas. O que acontece é que não há grandes tecnológicas europeias. Ou seja, a regulamentação pode dificultar a criação de novas empresas tecnológicas relevantes europeias.
O Efeito Bruxelas continuará, provavelmente, a influenciar a criação de bens de consumo e serviços que gerem dados. No entanto, a recente tendência de publicar modelos avançados de linguagem sem acesso da UE5 mostra que a UE poderá estar a aceder tardiamente a tecnologias fundamentais que não consegue produzir por si mesma, o que coloca em risco a sua competitividade.
Impacto económico e social da IA
A IA não afeta apenas a criação de bens e serviços, tendo também o potencial de transformar o mercado de trabalho, a criação de valor nas empresas e a geração de riqueza, semelhante a revoluções industriais anteriores. Relatórios recentes estimam que a IA poderá fazer crescer o PIB mundial até 25,6 biliões anuais de dólares6 e que a automatização poderá afetar 300 milhões de postos de trabalho7. A título de referência a estas quantidades, a UE tem um PIB de 20 biliões e uma força de trabalho de 200 milhões de trabalhadores.
Esta possível destruição massiva de emprego poderá concentrar ainda mais o valor nas grandes empresas tecnológicas, aumentando a desigualdade económica entre regiões. A redistribuição dos lucros da IA não será equitativa entre regiões, beneficiando as áreas (EUA) que desenvolvem a tecnologia, enquanto prejudicam as que apenas a consomem (UE).
Conclusão
A abordagem regulamentar da União Europeia relativamente à tecnologia tem sido historicamente baseada na gestão de riscos, sem prestar atenção suficiente ao desenvolvimento tecnológico interno. Já se sentem alguns travões em serviços de IA que não são inicialmente oferecidos na Europa, o que poderá limitar a produtividade e competitividade da região.
Talvez a Europa devesse reconsiderar a sua estratégia, equilibrando a regulamentação do consumo de produtos e serviços de IA com a fomentação do desenvolvimento tecnológico interno. A IA tem o potencial de ser a ferramenta de produção mais poderosa alguma vez criada, e não aproveitá-la plenamente poderá colocar a Europa numa desvantagem significativa face aos EUA e à China na quarta revolução industrial. A política deve focar-se, para além da proteção dos direitos fundamentais, na garantia de que a Europa consegue competir eficazmente no panorama tecnológico global.
Notas
1 Paris-based AI startup Mistral AI raises $640M. https://techcrunch.com/2024/06/11/paris-based-ai-startup-mistral-ai-raises-640-million/
2 Did you know Google Gemini isn’t available in Europe yet? https://www.androidauthority.com/did-you-know-google-gemini-isnt-available-in-europe-yet-3392451/
3 The economic potential of generative AI. https://www.mckinsey.com/capabilities/mckinsey-digital/our-insights/the-economic-potential-of-generative-ai-the-next-productivity-frontier
4 The potentially large effects of AI on Economic growth. https://www.gspublishing.com/content/research/en/reports/2023/03/27/d64e052b-0f6e-45d7-967b-d7be35fabd16.html
5 Lista das maiores empresas tecnológicas. https://companiesmarketcap.com/tech/largest-tech-companies-by-market-cap/
6 Relatório anual de 2024 sobre IA da Universidade de Stanford. https://aiindex.stanford.edu/report/
7 Europe faces competitiveness crisis as US widens productivity gap. https://www.ft.com/content/22089f01-8468-4905-8e36-fd35d2b2293e