Quando a moeda perde a face

Jorge Silveira Botelho BBVA AM
Jorge Silveira Botelho. Créditos: Vítor Duarte

TRIBUNA de Jorge Silveira Botelho, CIO da BBVA AM Portugal.

Lançar uma moeda ao ar para tentar a sorte, perdeu grande parte do seu propósito, simplesmente porque já não há cara ou coroa. Não é difícil entender isto, basta fazer uma viagem a Londres nos dias que correm com moeda física nos bolsos, para que rapidamente se sintam frustrados por não conseguirem pagar em lado nenhum, arriscando-se a trazer todo o dinheiro de volta, uma vez que, praticamente todos os pagamentos são feitos através dos telemóveis ou dos cartões de crédito. Esta foi uma das consequências mais óbvias da pandemia, em que a moeda tornou-se realmente digital, quase sem darmos por isso.

Mas há que entender que a verdadeira revolução da moeda digital advém da infraestrutura tecnológica que lhe está subjacente, que permite aproximar a economia financeira à economia real. Esta aproximação é tecnologicamente possível, designadamente através da infraestrutura do blockchain que detém a capacidade de gerar mais informação, rastreio, maior transacionalidade e consequentemente maior liquidez aos próprios ativos reais,

A pandemia veio só empurrar aquilo que já sabíamos, que num mundo extremamente endividado e tecnologicamente disruptivo, a fusão da política monetária com a política fiscal é uma realidade intrínseca em que vale a pena refletir, onde o avanço da infraestrutura digital moeda é o corolário desta convergência de políticas.

Não é por caso que a discussão da introdução da moeda digital de um Banco Central (CBDC) tem ganho bastante relevo neste último ano, sendo curioso que no universo das criptomoedas o grande crescimento que está a ocorrer é nas denominadas moedas digitais estáveis, as Stablecoins, que na prática muitas delas têm um peg com o dólar e/ou euro. Depois, temos países como a China a desenvolver várias experiências piloto, onde os recentes jogos olímpicos de inverno em Pequim, serviram de uma espécie de ensaio geral para a introdução da CBDC. Mas também no Ocidente, os principais Bancos Centrais dos países desenvolvidos parecem ter finalizado as suas análises, procurando agora o maior envolvimento e inevitável comprometimento do poder político. Nessa matéria, é de destacar a recente nomeação de Joe Biden para o lugar de vice-presidente do departamento de supervisão da FED, Michael Barr, um dos conselheiros do protocolo cypto Ripple.

O que parece também evidente para os Estados, é que não podem ficar fora da corrida da moeda digital, correndo o risco de perder toda a eficácia da política monetária, ao mesmo tempo que, perdem uma oportunidade única de maior eficiência da política fiscal. De facto, com introdução da CBDC, o mercado negro simplesmente se eclipsa com o fim da evasão fiscal, algo também fundamental para fazer face às necessidades de financiamento dos Estados, numa altura em que existe uma maior consciência da emergência, mas também do enorme custo da transição energética. Por outro lado, a emissão da moeda digital vai dar uma enorme flexibilidade à política monetária, porque a emissão de moeda pode ter distintos fins e datas de expiração diferentes. Por exemplo, os Estados podem emitir especificamente uma moeda digital que só pode ser usada apenas para comprar determinados bens (exemplo: alimentos), mas essa moeda expira ao fim de um ano. É este tipo de flexibilidade, que torna irreversível a convergência entre a política fiscal do governo e a política monetária do Banco Central.

Mas para além dos avanços tecnológicos e da pandemia, o que não sabíamos é que este conflito trágico na Europa ainda veio apressar mais a introdução da Moeda Digital de um Banco Central (CBDC).

De facto, a confiscação das reservas de um Banco Central de um país soberano, é um elemento novo na dinâmica geoestratégica, constituindo também uma oportunidade para uma mais rápida implementação da CBDC por parte de alguns países.

Para países cuja dimensão no comércio internacional não reflete a expressão da sua moeda, como a China e a Índia, o lançamento das suas moedas digitais centralizadas, pode aumentar o seu espetro de ação, provocando a própria desdolarizaçãodas matérias-primas. Esta crise energética tem estado a acelerar esse processo, com o yuan e a rupia a serem alvo de utilização para o pagamento do petróleo russo, mas com países do Médio Oriente a admitirem aceitar essas moedas como forma de pagamento.

Nesse sentido, o que temos de ter consciência é que a moeda digital e a sua infraestrutura vão aproximar como nunca, a economia financeira à economia real. Daí que a moeda digital centralizada também vai ter um impacto enorme na desburocratização e na eliminação dos denominados custos de contexto, o que vai permitir uma maior transparência da informação e uma melhor eficiência na formação dos preços relativos. Este é mais um fator que vai conferir liquidez e suportar o valor dos ativos reais, sobretudo aqueles que mais uma vez emergem da primeira derivada ESG: Equities, Soils & Gold.

É com este enquadramento que não deveria haver muitas dúvidas de que a moeda perdeu a sua face, porque em bom rigor, já nem sequer é preciso atirar uma moeda ao ar para se entender que a introdução da moeda digital centralizada, a CBDC, é uma realidade iminente.