Se o meu carro falasse…

Jorge Silveira Botelho. BBVA AM Portugal
Jorge Silveira Botelho. Créditos: Vítor Duarte

COLABORAÇÃO de Jorge Silveira Botelho, responsável da BBVA AM Portugal.

Quando em 1968 a Disney lançou o seu primeiro filme sobre um VOLKSWAGEN Carocha, que se intitulava por Herbie e detinha vida própria, já se antecipava a fiabilidade da indústria automóvel alemã e a sua capacidade de inovação. Mas a razão da escolha de um automóvel como personagem foi que, em todo o globo, a indústria automóvel tinha ganho um ímpeto enorme, em que a relevância da mobilidade e o enorme status que proporcionava fizeram com que o carro se tornasse quase um bem de primeira necessidade.

A relevância da indústria automóvel era de tal ordem que, desde a década de setenta até aos nossos dias, foi sempre o indicador adiantado de uma recessão quando surgia na capa do Financial Times o encerramento de uma fábrica nos EUA ou na Europa. Esse encerramento era sempre o prenúncio de que qualquer coisa má estava por chegar…

Ultimamente temos constatado que a indústria automóvel se está a debater com enormes desafios, onde a sustentabilidade, as alterações tecnológicas e a feroz concorrência estão a provocar profundas mudanças na relação entre o automóvel e o ser humano. 

Evolução do índice MSCI World vs o MSCI do setor de autos entre 31/12/2021 e 20/09/2025

O índice de autos global não recuperou das quedas de 2022 e ainda se encontra 25% abaixo do valor de final do ano de 2021, enquanto o índice MSCI World se encontra mais de 13% acima…

De facto, a pandemia é um marco importante na indústria, porque acelerou e provocou um conjunto de alterações estruturais nas preferências dos consumidores que explicam, em grande medida, o que realmente está a ocorrer no setor.

A primeira alteração é o aumento da maturidade do parque automóvel, onde as rápidas alterações tecnológicas e a falta de garantias da estabilidade das mesmas fazem com que o consumidor prorrogue a sua decisão de aquisição. Atualmente nos EUA, a maturidade do parque automóvel de passageiros é de 14 anos, tendo subido praticamente dois anos depois da pandemia…

Maturidade do parque automóvel nos EUA aumentou praticamente dois anos depois da pandemia

A segunda alteração prende-se com a feroz concorrência da China que está a empurrar os preços para baixo nos veículos elétricos, os quais já detêm um enorme grau de sofisticação e de fiabilidade tecnológica. Os fabricantes de automóveis chineses em 2022 produziram 62% dos veículos elétricos e 77% das baterias de veículos elétricos do mundo (fonte: ITIF). Ainda recentemente, o CEO da Ford, Jim Farley, no regresso de uma visita à China, veio particularmente impressionado e preocupado, com a capacidade tecnológica da indústria doméstica chinesa. Um dos dados que expressava com preocupação era a noção que a China neste momento dominava a capacidade tecnológica na produção de baterias e tinha capacidade de começar a produzir carros com 400 a 500 quilómetros de autonomia a preços extremamente competitivos (fonte: WSJ).

Veículos elétricos domésticos na China são mais baratos que os de combustão interna

Por fim, o rerating do mercado imobiliário residencial com a pandemia veio alterar a perceção de valor e de status de um automóvel. Atualmente, o esforço financeiro presente na aquisição de habitação própria não se coaduna com a sensação de desperdício de dinheiro na aquisição de um carro. O preço mediano de aquisição de habitação própria nos EUA mais do que dobrou em dez anos, e, em agosto, o preço mediano de comprar uma casa estava em cerca de 417 mil dólares, segundo a fonte do National Association of Realtors. Este esforço financeiro dificilmente se enquadra com um gasto adicional médio de 44,3 mil dólares na aquisição de um veículo novo (fonte: KBB), o qual, por sua vez, perde mais de metade do valor ao fim de 5 anos (fonte: RAMSEY).

Ritmo de depreciação de um automóvel novo nos EUA

Nesse sentido, e a julgar pelos persistentes dissabores do setor automóvel e pelos inúmeros profit warnings já ocorridos este ano, estes são, acima de tudo, sinais da emergência de uma procura estruturalmente distinta, ou seja, a crise no setor é um fenómeno idiossincrático e não uma crónica anunciada da chegada iminente de uma recessão.

Tão pouco parece que todo este frenesim em redor das tarifas vai poder resolver o problema, porque, no final, tudo se prende com a perceção do valor intrínseco que um determinado bem aporta.

Hoje, a tecnologia até pode colocar um carro a falar ou andar sozinho, mas não há dúvidas de que a perceção do valor intrínseco de um automóvel por parte do consumidor alterou-se radicalmente, quer em termos absolutos, quer em termos relativos.