Sixty Degrees: "Mantém-se uma elevada incerteza sobre os principais eventos que irão condicionar a segunda metade do ano"

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Créditos: Gayatri Malhotra (Unsplash)

TRIBUNA escrita pela equipa da Sixty Degrees Asset Management.

A primeira metade de 2022 foi, sem dúvida, exigente para a maioria dos investidores, tendo diversas classes de ativos, desde as mais arriscadas às consideradas mais seguras, apresentado retornos negativos neste período.

A forte subida da inflação, desde o início do ano, surpreendeu a larga maioria dos investidores que ainda se agarrava à possibilidade de a mesma poder ser um fenómeno transitório, apesar de já no final de 2021 existirem claros indícios sobre a persistência do aumento generalizado do nível de preços. A evolução dos índices de preços nos produtores, a par do preço dos bens energéticos e de outras matérias-primas, já deixavam antever este cenário desde a segunda metade de 2021. Ao mesmo tempo, no último trimestre de 2021, as taxas de juro das obrigações americanas já sinalizavam potenciais alterações na política monetária da Fed, tendo as yields (para o prazo de 2 anos) subido de 0,25% para 0,73% no 2º semestre de 2021 (no final do 1º semestre de 2022 atingiram os 2,96%).

O cenário de inflação elevada consolidou-se e tornou-se potencialmente mais duradouro com o início da guerra entre a Rússia e a Ucrânia. As sanções económicas dos países da NATO à Rússia, e a sua expulsão do sistema de liquidações internacional SWIFT, levaram a que a Rússia se aproximasse da Índia e da China, limitando a exportação de fertilizantes, gás e trigo para o mundo ocidental. Isto agravou o preço das matérias-primas alimentares e energéticas em todo o mundo.

Neste contexto, começam a surgir aumentos salariais um pouco por todo o mundo, alimentando o ciclo inflacionista acima do nível desejado e levando os Bancos Centrais a subidas de taxas de juro, na tentativa de combater esta dinâmica e justificar politicamente a sua atuação proativa.

Nos mercados financeiros, as ações norte-americanas, medidas pelo S&P500, acumularam uma perda de cerca de 20% (em dólares) no primeiro semestre. Este valor compara com uma queda de cerca de 15% no Europe STOXX600 (em euros). As obrigações também apresentam retornos negativos em todas as áreas, sejam elas obrigações soberanas de países desenvolvidos, corporate investment grade, high yield ou de mercados emergentes. As matérias-primas são a classe de ativos com melhores retornos em 2022, com o índice CRY (Refinitiv/CoreCommodity CRB Index) a valorizar cerca de 29% no primeiro semestre (em dólares). No que se refere ao mercado cambial, num cenário de aversão ao risco e subidas da taxa de juro por parte da Fed, o dólar americano já valorizou 9,3% face ao euro.

Mantém-se assim uma elevada incerteza sobre os principais eventos que irão condicionar a segunda metade do ano. A nível geopolítico com a evolução do conflito Ucrânia-Rússia, as ameaças da Rússia sobre outros países, nomeadamente os estados bálticos, ou as movimentações militares chinesas perto da ilha disputada de Taiwan. E a nível económico, principalmente com a evolução da inflação, a materialização de impactos económicos das subidas de taxas de juro no consumidor, nas empresas e nos Estados. Isto deve provocar um abrandamento do crescimento económico, na nossa opinião, ao ponto de causar uma recessão mais cedo do que o antecipado.

Perspetivas: obrigações

As obrigações continuam a ser a classe de ativos de maior dimensão nos mercados financeiros, impactando a poupança de muitas pessoas e o investimento de muitas entidades, sejam elas seguradoras ou fundos de pensões. Por esse motivo, esta tem sido a principal categoria a ser apoiada pelos programas de compra de ativos financeiros dos Bancos Centrais.

Como é sabido, as subidas nas taxas de juro fazem cair os preços das obrigações de taxa fixa já emitidas. Contudo, o retorno anual de deter essas obrigações até à maturidade (yield to maturity) permanece num nível baixo, levando perfis de investimento tidos como mais conservadores a sofrer perdas inesperadas para muitos dos seus investidores. Este fenómeno leva à retração do investimento, até as taxas de juro apresentarem recompensas mais elevadas, ou existir uma estabilização da inflação.

As obrigações soberanas ainda transacionam a yields muito baixas, especialmente em alguns países onde os elevados níveis de endividamento e de despesa corrente são elevados, ou seja, países cujo risco de crédito ainda não está devidamente refletido nos respetivos spreads.

Relativamente às obrigações de dívida empresarial investment grade, as empresas aproveitaram a última década para se financiar no longo prazo a taxas de juro muito baixas. Desta forma, as suas emissões de dívida podem apresentar um maior risco de flutuação de preço, com especial destaque para a dívida emitida nos últimos 12 meses, com maturidades mais elevadas e taxas de juro baixas quase nulas.

Nos segmentos de obrigações de dívida empresarial high yield e de entidades de mercados emergentes parecem existir mais oportunidades, pois os prémios associados ao risco de crédito têm subido rapidamente, a par do incremento na taxa de juro base. No entanto, importa ser seletivo, em função do expectável abrandamento do crescimento económico que deverá causar uma recessão no mundo ocidental, motivada pela rápida subida de taxas de juro, pela travagem na concessão de crédito e pela redução no consumo. Associado a estes riscos, acresce a potencial valorização do dólar norte-americano, que em contexto de crise é sempre a moeda de refúgio, e o potencial de problemas que poderá causar às entidades dos mercados emergentes que se têm financiado nesta moeda enquanto mantém as suas receitas em moeda local.

Perspetivas: ações

Relativamente ao mercado acionista, a volatilidade deverá continuar elevada durante o segundo semestre de 2022. A subida de taxas de juro altera a avaliação das empresas e prejudica mais as empresas que ainda precisam de avultados investimentos para crescer e/ou não produzem cash-flows no curto prazo.

Os múltiplos elevados a que as empresas transacionavam há cerca de 12 meses deverão continuar a contrair-se enquanto as taxas de juro mantiverem a sua trajetória ascendente. Tomando o S&P500 como medida do mercado, esse efeito parece já ter tido algum reflexo, com o Price Earnings Ratio a passar de 27 para 18 vezes, no espaço de 1 ano, abaixo da média dos últimos 5 anos (22). Temos de considerar que estes múltiplos podem alterar-se rapidamente, ou seja, podem voltar a subir caso as empresas vejam os seus resultados deteriorar-se, o que deverá sustentar a pressão vendedora no mercado até ao 1º trimestre de 2023. Este é um cenário provável caso se torne mais evidente o aproximar duma recessão.

P/E Ratio nos últimos dois anos

Fonte: Bloomberg

P/E Ratio nos últimos cinco anos

Fonte: Bloomberg

Como atrás realçado, as cotações das empresas sofreram este impacto de forma diferente. Nos setores tecnológicos, em especial nas empresas que ainda não produzem cash-flows positivos, assistimos a desvalorizações de cerca de 60% nas respetivas capitalizações bolsistas, enquanto, nas empresas associadas à produção energética registaram-se retornos positivas. Geograficamente também existe dispersão, com os países cuja economia está mais dependente da energia russa a sofrerem mais do que outros mais distantes do conflito (exemplo já com dividendos: índice alemão DAX -21%, índice espanhol IBEX -6,5% e índice português PSI +10,5%).

De qualquer modo, o mercado acionista poderá continuar a ser uma boa alternativa de médio prazo, mas sempre baseada na análise cuidada das oportunidades e assumindo uma gestão ativa do portefólio. Neste caso, uma correta alocação geográfica e setorial, para não entrar no nível de stockpicking, poderá fazer uma grande diferença comparativamente aos retornos obtidos na média das ações ponderada por capitalização bolsista (gestão passiva).

Perspetivas: matérias-primas

Após uma subida galopante no primeiro semestre de 2022, especialmente do complexo energético devido às alterações de compras a nível mundial, as matérias-primas deverão apresentar uma volatilidade mais elevada. Esta pode ser justificada em quatro pontos. Em primeiro lugar, as perspetivas de uma recessão, com menor consumo de bens energéticos e matérias-primas industriais. Em segundo, a escassez de produção para entrega imediata, existe falta de volume de matérias-primas para entrega devido a problemas produtivos, de logística e mais recentemente geopolíticos. Os ciclos de produção, nomeadamente nas matérias-primas agrícolas que são sensíveis ao timing de produção e à disponibilidade de fertilizantes (mercado dependente da produção da Rússia e Bielorrússia). Por fim, o aumento das taxas de juro, que pode levar a um custo mais elevado de gestão de stocks pois será mais caro financiar o capital circulante associado à detenção de elevados stocks nas empresas e das reservas estratégicas de alguns países.

Com estas dinâmicas, será mais provável assistirmos a alguma dispersão no comportamento de matérias-primas específicas, mais do verificado durante o primeiro semestre, onde ainda existiu alguma uniformidade no comportamento entre grupos de materiais (metais industriais, matérias-primas agrícolas, bens energéticos ou metais preciosos). No entanto, as matérias-primas agrícolas deverão sofrer uma menor influência da recessão e uma maior pressão quer dos consumidores, quer pela necessidade de constituição de reservas estratégicas em muitos países.

Preço do ouro nas diferentes moedas

Fonte: Bloomberg

Quanto aos metais preciosos, é ainda cedo para voltarem a apresentar o potencial que lhe atribuimos em dólares norte americanos. No caso do ouro, o seu preço já se tem vindo a valorizar na maioria das outras moedas relevantes (valorização no 1º semestre: +7,31% em EUR, +16,53% em JPY e +9,82% em GBP. -1,20% em dólares). Mesmo assim, o ouro continua a ser um ativo pouco representado nas carteiras dos investidores, pelo que o seu potencial poderá ser interessante neste ambiente de tensão geopolítica e duopólio militar entre os blocos associados aos EUA e à China.

Perspetivas: exposição cambial

A grande estrela do primeiro semestre de 2022, em termos cambiais, foi o dólar norte-americano que se valorizou contra quase todas das principais moedas globais. Num contexto de subida de taxas de juro, onde a Reserva Federal demonstra ter maior margem de manobra, do que a maioria dos outros países/blocos ocidentais. Apenas o real brasileiro e o peso mexicano valorizaram face ao dólar, devido às elevadas taxas de juro que estes países praticam (13,25% no Brasil e 7,75% no México).

Apesar da performance do USD, mantemos um otimismo reservado nesta moeda devido à maior margem de manobra por parte da Reserva Federal e à fragmentação das condições de financiamento na Zona Euro. Uma paragem no conflito entre a Ucrânia e a Rússia poderá dar uma folga temporária ao euro, materializando uma recuperação. No entanto, para uma consolidação de longo prazo é necessária uma mudança da dinâmica económica, um incremento na autonomia energética, mais e melhor investimento e desenvolvimento em tecnologia própria e novas parcerias com países produtores de matérias-primas que assegurem a autonomia estratégica.

Retorno das várias moedas face ao dólar

Fonte: Bloomberg

Em suma, acreditando que enfrentaremos mais um semestre de elevada volatilidade na maioria dos ativos, a gestão ativa, particularmente a gestão flexível (como aquela onde baseamos a nossa estratégia de investimentos), deverá aportar maior potencial de adaptação e de capitalização de oportunidades, quer a nível setorial, quer geográfico. Os mercados financeiros poderão voltar a sofrer alterações bruscas, com particular acuidade nos ativos mais conservadores, o que deverá continuar a incrementar as perdas nos perfis de menor risco, nomeadamente se assistirmos à deterioração da capacidade de refinanciamento de crédito às empresas.

Fonte: Cedido (Sixty Degrees)