Na ressaca do dia da libertação, Jorge Silveira Botelho, responsável da BBVA AM Portugal, analisa os efeitos: o comércio internacional terá mais bens cotados em euros e a gestão ativa poderá passar a ter um papel preponderante.
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COLABORAÇÃO de Jorge Silveira Botelho, responsável da BBVA AM Portugal.
O Dia da Libertação, acabou por se transformar num dos maiores movimentos de aversão ao risco nos últimos anos, apenas similar ao que ocorreu durante a pandemia. De facto, em poucos dias, assistimos a correções significativas, nos mercados acionistas, nos mercados de crédito e de matérias-primas.
As razões destas correções, vai muito além do significado das tarifas recíprocas, a partir das quais emergiu nos agentes económicos globais uma preocupação genuína de receios de um maior risco de recessão global.
Evolução do Crude, S&P500 e STOXX6000 depois do Dia da Libertação

Tanto na forma como no conteúdo, o anúncio das tarifas superou largamente as expetativas. À parte da metodologia do cálculo das tarifas recíprocas, da encenação televisiva e dos adereços metodicamente escolhidos para o cenário de um programa da manhã, em poucas horas, o dia da libertação transformou o “excecionalismo americano” no “isolacionismo americano”. Na essência, houve uma preocupação de evidenciar que não existia nenhuma diferenciação por todas as relações e alianças políticas e económicas que se foram estabelecendo ao longo de décadas, com todos os seus distintos parceiros.
À parte dos riscos desta situação se agravar por um excesso de autoflagelação ou por um orgulho desmesurado, os quais não podemos eliminar na totalidade, algum tipo de racionalidade deverá imperar, sobretudo, porque existe um espaço de manobra para negociar e reverter alguns dos erros grosseiros não forçados.
Então o que se devia esperar de forma pragmática durante os próximos tempos, em face do que ocorreu?
No muito curto prazo, é natural que persista esta volatilidade dos mercados, até que exista uma posição oficial que reverta parte dos danos de confiança provocados, seja esta liderada pela própria administração americana ou pela Reserva Federal Americana, ou mesmo por ambas as instituições.
Os dados económicos e de confiança nos EUA, já evidenciavam um abrandamento da economia no primeiro trimestre; no segundo trimestre essa desaceleração de confiança e crescimento ainda vai ser mais pronunciada. Nestas circunstâncias o foco vai estar nos EUA, mas nos riscos de uma recessão e não nos riscos de inflação.
EUA: inquérito de novas Encomendas na indústria e nos serviços (ISM)

No curto e médio prazo, depois de se verificarem os estabilizadores automáticos, os mercados globais deveriam reverter parte das perdas, porque muito da desaceleração está descontada. Na realidade, as condições globais de liquidez estão elevadas e os fundamentais do setor privado das economias (empresas e consumidores) encontram-se robustos, dado o baixo endividamento, as elevadas taxas de emprego, as elevadas taxas de poupança das famílias e o relevante efeito riqueza presente no setor privado da economia. Por outro lado, é de esperar, que tanto a política monetária como a política fiscal, em termos globais, ganham um novo ímpeto.
EUA: Relação da dívida e do património com o rendimento disponível

No médio e longo prazo, há de facto algumas mudanças a assinalar, mas o principal denominador comum é que os EUA, de certa forma, intencional ou não, debilitaram o seu posicionamento estratégico, porque todos os restantes países o elegeram como um adversário comum e, entre si, vão procurar bases para um maior e mais fácil entendimento.
Na realidade, a discussão das tarifas tornou-se um fator secundário. O problema principal é que o comércio internacional tinha um parceiro exigente - mas previsível, pragmático e confiável – e, a partir de agora, negociar com os EUA ou com a China, deixa de ter grande diferença. Na génese, isto representa uma enorme degradação das práticas comerciais internacionais.

Não obstante, e uma vez que, os restantes países representam cerca de 84% das importações globais, não devemos subestimar o propósito dos mesmos se quererem tornar menos dependentes do dólar. Segundo um estudo da economista-chefe do FMI desde 2019, Gita Copinath, a valorização de 1% do dólar num ano representa uma redução das trocas comerciais entre o resto do mundo, de 0,6% a 0,8%. A razão é de certa maneira intuitiva, na medida em que a grande maioria dos preços internacionais dos bens são fixados em dólares, o que significa que quando este se aprecia, todos os restantes países vão ter menor capacidade de comprar bens entre si e naturalmente vão importar menos.
Alocação das reservas cambiais no 2º trimestre de 2023

É neste âmbito, que o euro surge como um elo de natural de diversificação, na medida em que a zona euro é um dos maiores parceiros comerciais e mais credível dos BRICS e, simultaneamente, a segunda maior reserva cambial, representando 20,6% do total de reservas em 2023 (fonte: FMI).
É de esperar que muitos bens possam passar a ser cotados em euros nos próximos anos e que o dólar vá necessariamente perder o seu peso e estatuto na economia mundial. Se isso for verdade para economia real, é de esperar também, em consequência, uma maior realocação dos ativos financeiros a nível global, com a Europa e com os mercados emergentes a serem os grandes beneficiados.
Num contexto onde o comércio internacional vai estar sujeito a grandes alterações é natural que muitos dos vencedores de outrora possam passar a vir a ser os grandes perdedores, exigindo-se um muito maior foco na gestão ativa em detrimento da gestão passiva. De facto, num mundo onde o dólar deixa de ter a total primazia, os índices internacionais deverão refletir melhor os pesos geográficos em função da paridade de poder de compra de cada região. Muitas empresas multinacionais vão ser afetadas por esta nova ordem mundial e vão ter de repensar a sua logística, os seus mercados e a consequentemente a sua dimensão, outras inesperadamente, vão desaparecer, porque os seus modelos de negócio repentinamente tornaram-se inviáveis, enquanto outras, vão simplesmente ocupar os lugares vagos. No final, o comércio internacional é como água, ou seja, encontra sempre a oportunidade para fluir, neste mundo fragmentado, multipolar, mas tecnologicamente cada vez mais disruptivo…