Voando sobre um ninho de cucos…

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Jorge Silveira Botelho. Créditos: Vítor Duarte

Artigo de opinião de Jorge Silveira Botelho, CIO da BBVA AM Portugal.

Voando sobre um ninho de cucos, dá-nos a imagem de um hospício do qual, quem entra dificilmente consegue sair. O uso desta expressão idiomática inglesa tornou-se vulgar para descrever situações em que já não há volta a dar...

A dicotomia entre a política monetária e os mercados financeiros é hoje uma realidade incontornável e por isso não se percebe muito bem porque é que os Bancos Centrais ainda se dão ao trabalho de, volta e meia, demonstrar a sua preocupação sobre o valor dos ativos financeiros. Tudo isto ainda se torna menos percetível, uma vez que eles procuram sempre utilizar expressões e palavras um pouco rebuscadas, em que muitas vezes até nos obrigam ir ao dicionário para tentar perceber melhor o contexto das mesmas: Irrational Exuberance, Conundrum, Froth, etc…

Fica por vezes a sensação, de que quando eles se põem a tecer este tipo de comentários e se esforçam para usar este género de linguagem, é quase como se eles estivessem a desresponsabilizar-se sobre algo que, eventualmente, possa vir a correr mal. No fundo, até parece, como quem não quer a coisa, que procuram deixar implicitamente gravado no ar: - Eu avisei!

Mas o problema de fundo é que muitas vezes os Bancos Centrais esquecem-se que a métrica fundamental para medir o valor de um ativo financeiro é o custo de oportunidade de deter moeda, ou seja, a taxa de juro. Contudo, nos dias que correm, essa métrica parece estar esgotada, dando lugar à gestão dinâmica do balanço e da liquidez.

Hoje, existe uma perceção de que a globalização dos fluxos financeiros e o excesso de endividamento aumentaram a sensibilidade do ciclo económico à política monetária. Tudo isto explica, a razão pela qual os mercados financeiros ficaram viciados em liquidez ao longo destas últimas duas décadas, agravando-se essa dependência depois da grande crise financeira de 2008. A maior sensibilidade do ciclo económico à política monetária tem como segunda derivada, a importância do comportamento dos ativos reais. Na prática, estes são o outro prato da balança que assegura a solvabilidade do sistema económico, financeiro e social.

Essa é também a razão pelo aumento do espetro da política monetária, que irremediavelmente tem de garantir a estabilidade dos ativos financeiros, na medida em que a queda dos mercados financeiros mina a confiança dos agentes económicos, desestabiliza os mercados de crédito e os mercados imobiliários, e pode precipitar a economia numa espiral recessiva. Não é por acaso que toda a temática de ESG encaixa tão bem na nomenclatura dos Bancos Centrais como na nomenclatura dos mercados financeiros. À parte das legítimas e relevantes preocupações sobre as alterações climáticas e sobre a igualdade de género, há que garantir que existem processos de governo nas empresas robustos, que ajudem a mitigar os riscos de gestão das mesmas. Esta é mais uma forma de se reduzir os riscos de investimento, convidando implicitamente os aforradores a diversificarem as suas poupanças e a aumentarem o horizonte temporal dos seus investimentos, uma vez que a realidade de taxas de juro reais intrinsecamente baixas, é hoje inquestionável. A razão é simples de se apreender, na medida em que, esta é única forma de se evitar uma convulsão política, económica e social profunda.

De facto, se ainda acrescentarmos a esta reflexão, o paradoxo vigente entre a inevitabilidade de taxas de juros reais muito baixas e os enormes desafios que estão subjacentes ao financiamento da longevidade humana, facilmente intuímos que a única via possível de se seguir, é aquela que garante a valorização estrutural dos ativos reais a médio e longo prazo.

É neste contexto que devemos enquadrar o potencial de valorização dos mercados acionistas globais no longo prazo, dado que a política monetária vai ser sobretudo executada via os seus balanços e que o custo de oportunidade de deter moeda no longo prazo vai estar irremediavelmente muito baixo.

De facto, assumidamente os Bancos Centrais não procuram suportar o valor dos ativos reais, mas implicitamente é o que a sua política monetária procura garantir. Por isso, e independentemente de algumas querelas, de alguns amuos e de alguns tabus, vamos continuar a ver os Bancos Centrais a estarem; por vezes impacientes, outras vezes demasiado pacientes, para depois voltarem a ficar de novo impacientes, para que mais tarde penetrem num qualquer estado de alma mais digital. Mas no essencial, nada vai puder mudar muito e todos sabemos disso. Resta-nos continuar a voar, da melhor maneira que soubermos, por cima deste ninho de cucos!