Os piores cenários para as eleições americanas aconteceram. E agora?

EUA-eleições_pandemia
unsplash

Só havia dois desenlaces das eleições americanas que as gestoras temiam: resultados renhidos e um presidente sem poder maioritário no Congresso. Ambos aconteceram. Ainda que enquanto escrevemos estas linhas Joe Biden esteja próximo da presidência, a apenas um Estado dos votos necessários, os números ainda podem dar a vitória a Donald Trump.

O que parece mais claro é que os democratas vão manter a Casa dos Representantes, mas não o Senado que será republicano. Ou seja, ainda que Biden recupere a Casa Branca para os democratas, não terá força suficiente para impor sem impedimentos as suas políticas. E isto, para Jack Janasiewicz, gestor da Natixis IM, é muito mais importante do que a presidência. “Um Senado republicano basicamente significa um bloqueio. O estancamento significa que não haverá um Green Deal. Não há aumento de impostos. Não há estímulos fiscais massivos”, resume.

Não só o facto de ser um governo com uma forte oposição, mas os resultados em alguns Estados estão tão renhidos que abre a porta para uma disputa legal, como já aconteceu no ano de 2000 entre Al Gore e George Bush. O atual presidente já ameaçou recorrer ao Supremo Tribunal e esta noite foram vividos momentos de tensão em alguns lugares onde estão a ser contados os votos.

São os dois grandes medos do mercado materializados. E apesar de olharmos para os principais índices vemos um forte rally a nível global. Mas ficarmos à superfície é um erro de interpretação. Isto porque perderíamos as duas grandes mensagens: a forte procura por Tesouro americano e que o grosso das subidas nas ações deu-se na tecnologia e saúde. “Apesar dos futuros do S&P 500 se terem movido numa faixa de mais de 3%, os futuros do Russel 200 sensíveis a nível nacional estão firmemente mais baixos e os futuros do Nasdaq 100 mais altos, já que os rendimentos das obrigações reais mais baixos são positivos para as valorizações de ações disruptivas que dominam este índice de tecnologia pesada”, detalha Oliver Blackbourn, gestor da equipa de Multiativos da Janus Henderson.

O que na verdade estamos a ver é como a vaticinada Onda Azul se desvanece e como os mercados já estão a ter isso em conta. “As tecnologias recuperaram face aos valores cíclicos à medida que se desvanece a perspetiva de um grande pacote de estímulos de uma onda azul, os rendimentos das obrigações do Tesouro caíram e o dólar americano recuperou com alguma força”, conta Erik L. Knutzen, diretor de Investimentos de Multiativos da Neuberger Berman.

Nas ações, o foco está nas tecnologias. Porque como explica Toby Nangle, responsável global de alocação de ativos da Columbia Threadneedle, o facto de Biden não ter possibilidade de ter poder no Senado implica que a abolição do obstrucionismo, temida pelos investidores tecnológicos que desconfiam da perspetiva de endurecimento regulatório, parece menos provável. Nesta linha, Knutzen prevê que persistirá esse melhor comportamento das ações de crescimento defensivo no setor da tecnologia de grande capitalização num contexto de rendimentos estáveis agora que cai a ameaça de impostos mais altos e regulamentação mais rigorosa que tinha trazido uma onda democrata.

Em linhas gerais, todos os olhares estão postos na aplicação do regime fiscal da nova administração, segundo Christian Hantel, gestor da Vontobel Asset Management. “Se se confirmar que Biden será o próximo presidente, a reversão parcial da reforma fiscal de 2018 afetará primeiro os setores que inicialmente beneficiaram mais da redução de impostos: o transporte e as finanças”, aponta.

Também haverá movimentos na divisa. “É um cenário de divisão de poder ou se o resultado for controverso, a crescente volatilidade deverá impulsionar a subida do apetite pelo dólar no curto prazo, enquanto as expectativas de um maior défice podem retroceder bruscamente”, analisam na Amundi.

Atenção ao que nos estão a dizer as obrigações

Tanto a vitória dos democratas como a dos republicanos teria sido uma boa notícia para ativos de risco porque ambos os partidos concordam que a sua prioridade será um novo pacote de ajuda fiscal. Mas agora esta medida, que os mercados veem como uma prioridade para manter a estabilidade económica, poderá expandir-se no tempo. E isto, para os especialistas da Amundi, é o fator mais importante, com repercussões na economia e nos mercados financeiros, especialmente nos cíclicos, nas commodities e na energia.

“Os mercados gostam dos factos corretos. Mas não temos o que sabemos e o que não sabemos”, afirma Franck Dixmier, diretor de Investimentos Globais de Obrigações da Allianz GI. O problema é que o que não sabemos é o que poderá trazer a volatilidade se as coisas ficarem muito tensas. Donald Trump já anunciou que quer recorrer ao Supremo para interromper a contagem dos votos, lembra o especialista. Se a disputa permanecer na esfera jurídica, os mercados devem evitar uma alta volatilidade, prevê. “No entanto, se a disputa legal, promovida pelo próprio Trump, se tornar em manifestações de massa e violência, os mercados podem ver movimentos para ativos de qualidade, o que vai pesar sobre os ativos de risco”.

Jim Leaviss, diretor de Investimentos de Obrigações da M&G, coincide: "Vimos uma grande recuperação nas obrigações do Tesouro a 10 e 30 anos durante a noite, em parte como reação às expectativas de menor expansão fiscal. Mas isto também reflete o valor do Tesouro como obrigações de refúgio, especialmente à medida que continuamos a ter volatilidade em torno do resultado geral. As obrigações alemãs também estavam no bom caminho esta manhã como outro ativo refúgio”.

Curiosamente, o nicho mais tranquilo pode ser o crédito. Leaviss não prevê muitos movimentos nos mercados de crédito olhando para futuros de ações, embora possa haver apoio para as empresas americanas de petróleo, gás de xisto e saúde, por exemplo. Setores onde agora será mais difícil para os democratas recuar numa perspetiva regulatória se vencerem.

Apesar da incerteza, os investidores também devem ter em conta um fator-chave: o apoio da Reserva Federal. Para James Athey, diretor de Investimentos da Aberdeen Standard Investments, um resultado tão renhido põe mais pressão sobre a Fed. “Um Congresso dividido, e um resultado contestado, são maus presságios para as perspetivas de um novo pacote de estímulos. A falta de estímulos vai requerer mais tarde ou mais cedo que a Fed reaja, e isso é preocupante”, opin.a