Preço, Valor e Reflexividade

O recente manifesto sobre a reestruturação da dívida levantou um conjunto de questões quer do foro político, quer do foro económico. Será a dívida sustentável? Terá de ser inevitavelmente reestruturada? Os defensores da reestruturação focam-se no stock acumulado de dívida a na pesada fatura de juros; os detratores da reestruturação focam-se na prioridade para as boas contas e para a geração de saldos primários positivos. Uns e outros concordam que uma das variáveis essenciais para responder à questão da sustentabilidade é a taxa de juro, ou, mais propriamente, duas taxas de juro: a taxa de juro média das emissões vivas e a taxa de juro média de refinanciamento do stock de dívida. 
 
Reflexividade
 
A taxa de juro média de refinanciamento da dívida é uma variável com características especiais. Por um lado, é o reflexo das políticas orçamentais, isto é, representa o prémio por boas práticas (taxas baixas) e o castigo por más práticas (taxas altas). Por outro lado, com um stock de dívida tão elevado (acima de 100% do PIB e com tendência crescente), a taxa de juro interage fortemente com o próprio orçamento, isto é, uma taxa de juro alta não é só o castigo, mas também um fator que pode ditar a insustentabilidade matemática da dívida. Em sentido inverso, uma taxa de juro baixa é não só o prémio, mas também um fator que pode tornar a dívida sustentável.
Devido a este mecanismo de reflexividade, muito habitual nos mercados financeiros, é possível dizer hoje que a dívida portuguesa tem mais probabilidades de ser sustentável do que há três anos atrás. Uma abordagem clássica da interação entre preço e valor tiraria outro tipo de conclusões sobre as taxas de juro, do tipo: “se as taxas já estavam ridiculamente baixas face aos fundamentos, agora ainda estão ridiculamente mais baixas.” Esta abordagem clássica ignora o processo reflexivo. Peca de um erro conceptual, embora seja possível integrar a lógica de âncora do “value investing” com os “espíritos animais” da reflexividade.
 
Enviesamentos e Agências de rating
 
O mercado está organizado de uma forma que acentua certos enviesamentos. Vejamos o papel das agências de rating: estas agências atuam tipicamente após o grande movimento, acentuando-o sobremaneira. Foi assim quando a dívida pública portuguesa foi classificada de lixo e será assim se voltar a ser classificada como dívida de qualidade. As agências de rating não são observadores normais. As suas notações são linhas orientadoras ou obrigatórias no modus operandi dos fundos que compram dívida soberana. Se as agências confirmarem o que mercado já está a dizer, abre-se a porta outrora fechada, as taxas de juro descem ainda mais, e a dívida portuguesa poderá tornar-se sustentável. Pelo menos até ao próximo teste/crise. 
 
Conclusão
 
O mecanismo reflexivo não é uma espécie de varinha de condão que resolve ou destrói tudo. Ele interage com os fundamentos ou com a perceção dos fundamentos, mas quando a perceção se afasta da realidade há um teste (uma espécie de máquina da verdade). Sem boas contas e sem uma redução significativa do stock de dívida, Portugal será vulnerável ao teste da verdade. Mais cedo ou mais tarde.
 
(Foto: fiubusiness, Flickr, Creative Commons)