Se compararmos a tendência da inflação dos anos 70 com a atual, as coisas parecem muito semelhantes. Isto levanta uma questão: após o recente abrandamento dos preços no consumidor, estaremos perante uma dolorosa segunda vaga com todas as suas consequências negativas?
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A inflação assemelha-se à força do mar: vai e vem em ondas. Este comportamento foi particularmente evidente durante a grande inflação que atingiu os Estados Unidos entre 1965 e 1982. O período de maior sofrimento durou de 1972 até inicio dos anos 80, quando a inflação ultrapassou os 14%. Foi Paul Volcker, presidente da Reserva Federal dos EUA na altura, que finalmente conseguiu colocar-lhe um fim, desencadeando duas breves, mas dolorosas, recessões e aumentando a taxa de juro oficial para cerca de 20%. A este remédio amargo seguiu-se uma rápida recuperação da economia norte-americana.
Tal como explicam Stefan Eppenberger, responsável de Estratégia Multiativos na Vontobel AM, e Michaela Huber, estratega de Cross-Assets na entidade, se compararmos a tendência da inflação nessa altura com a atual, as coisas parecem muito semelhantes. Isto levanta uma questão muito legítima: após o recente abrandamento dos preços no consumidor, estaremos perante uma dolorosa segunda vaga com todas as suas consequências negativas?
Nos anos 70, a inflação ocorreu em ondas; atualmente, a situação é muito semelhante
Para responder a esta pergunta elaboraram uma “lista de controlo da segunda vaga”, na qual distinguem três grandes categorias: considerações de política monetária e perturbações da oferta e da procura.
Fatores que favorecem uma segunda vaga
“É importante sublinhar que nem todos os critérios têm de ser cumpridos para ser desencadeada uma segunda vaga. Em casos extremos, dois ou três critérios são suficientes. No entanto, uma política monetária expansiva (pelo menos um dos três primeiros argumentos) é, na nossa opinião, uma condição prévia necessária”.
Comparação: inflação na década de 70 e a atual
Atualmente, os interessados em encontrar os culpados da inflação dos anos 70 têm várias opções. Alguns culpam o embargo árabe ao petróleo, outros os especuladores e outros os gananciosos representantes sindicais. “Estes argumentos são justificados, mas não têm em conta uma das razões mais importantes: o forte crescimento monetário. Graças a Milton Friedman, prémio Nobel, sabemos que a inflação é sempre e em toda a parte um fenómeno monetário”.
Milton Friedman argumentou que em nenhum lugar do mundo se poderia encontrar uma inflação que não tivesse sido causada por um aumento prévio da oferta monetária ou da taxa de crescimento da oferta monetária. “Tendo em conta o crescimento negativo da massa monetária, parece pouco provável que ocorra um forte impulso inflacionista”.
O atual crescimento da massa monetária aponta para uma inflação mais baixa no futuro
Quanto à flexibilização das taxas de juro reais, os especialistas da Vontobel AM também consideram improvável uma segunda vaga. “Se compararmos, por exemplo, a chamada taxa diretora neutra (que a Fed estima em 2,5%) com a taxa diretora atual, é evidente que a Fed já está muito restritiva segundo as suas próprias medidas”. E o último fator da política monetária: a debilidade significativa da moeda? Nos anos 70, a queda do valor do dólar após o Nixon schock foi um importante fator de inflação.
Na década de 70, o colapso do dólar foi um motor importante
“Em 2023, as coisas têm um aspeto um pouco diferente. O dólar norte-americano caiu desde os máximos do ano passado, mas mantém-se relativamente forte. Isto deve-se a várias razões: além da procura de ativos refúgio (devido à atual preocupação com as perspetivas económicas, o debate sobre o teto da dívida norte-americana e a inquietude em torno da saúde dos bancos dos EUA), a perspetiva de possíveis novos movimentos das taxas de juro por parte da Reserva Federal também desempenharam um papel este ano. Embora esperemos que o dólar enfraqueça nos próximos meses, uma desvalorização como a dos anos 70 parece improvável”.
Passando agora aos fatores do lado da procura, encontramos a interação entre a inflação e o crescimento económico (a inflação pode ser descrita com um indicador atrasado do ciclo económico). “Se observarmos os principais indicadores económicos, como a componente de novas encomendas do Institute for Supply Management (ISM), o atual crescimento continua a ser demasiado débil para justificar outro forte impulso inflacionista”.
É improvável que a inflação volte a aumentar, também devido à debilidade da economia
E quanto ao ponto cinco: aumentar significativamente o estímulo fiscal? “Embora a política fiscal norte-americana na década de 70 fosse muito flexível, parece improvável que um forte estímulo fiscal ocorra num futuro próximo. No entanto, há acontecimentos importantes que os investidores devem estar atentos a este respeito: as eleições presidenciais norte-americanas a 5 de novembro de 2024 (promessas de campanha?) e a futura política chinesa (estímulo para impulsionar a economia chinesa?)”.
O último fator relacionado com a procura é o descontrolo das expetativas de inflação. “As expetativas de inflação não ancoradas são traiçoeiras porque podem desencadear uma espécie de profecia autocumprida. Se os consumidores acreditam que a futura inflação será superior à atual, têm um incentivo para consumir antes do que depois (uma vez que teriam de pagar mais pelos mesmos bens e serviços no futuro). No entanto, ao contrário dos anos setenta e oitenta, as atuais expetativas de inflação estão bem ancoradas”.
Expetativas de inflação bem ancoradas
Os quatro últimos fatores apontam para perturbações da oferta. “Em primeiro lugar, existe a possibilidade de ocorrer outra crise dos preços da energia. O embargo árabe ao petróleo (1973-1974) foi a gota de água que fez transbordar o copo. Como consequência do embargo, o preço do petróleo quadriplicou, passando de 2,90 dólares por barril (antes do embargo) para 11,65 dólares por barril (em janeiro de 1974), o que alimentou a inflação. Alguns anos mais tarde, a revolução iraniana (1979) provocou outro aumento dos preços do petróleo”.
O embargo petrolífero árabe foi um dos principais motores da década de 70
De momento, tudo parece calmo, pelo menos segundo o índice de volatilidade do petróleo bruto do Chicago Board Options Exchange. “É difícil saber se iremos assistir a um novo aumento dos preços da energia nos próximos meses: 2022 colocou em evidência a imprevisibilidade dos acontecimentos geopolíticos. Acreditamos que os investidores devem estar atentos, em particular, à situação no Médio Oriente, além dos acontecimentos na Ucrânia”.
De acordo com os especialistas, a seguinte perturbação do lado da oferta (problemas na cadeia de abastecimento mundial) está relativamente afastada dos anos 70 e 80, mas é relevante para a evolução da inflação na atualidade.
Quanto às cadeias de abastecimento, acreditam que atualmente há poucos motivos de preocupação. “Por exemplo, um índice relevante da Reserva Federal de Nova Iorque (Global Supply Chain Pressure Index) caiu desde o seu máximo pandémico de 4,3 para -1,2”.
No entanto, um fenómeno que acompanham de perto neste contexto é a crescente polarização (também denominada slowbalization) que se observa, por exemplo, entre os EUA e a China. “Na nossa opinião, não se pode descartar a possibilidade desta evolução provocar uma subida dos preços a longo prazo”.
O abrandamento da globalização pode ter um efeito inflacionista
Passando ao ponto nove, a escassez no mercado imobiliário norte-americano, aqui colocam um primeiro sinal de cautela. Segundo Freddie Mac, nos EUA faltam atualmente cerca de 3,8 milhões de casas, tanto para arrendamento como para venda.
“Esta escassez é uma razão importante para o facto dos preços das casas nos EUA terem diminuído pouco apesar da subida das taxas de juros. Isto também teve impacto na inflação imobiliária norte-americana. Esta última tem atualmente uma enorme importância, uma vez que representa cerca de 50% da inflação subjacente norte-americana”, afirmam.
Todos os olhos postos no mercado imobiliário
No ponto 10 - a escassez de mão de obra - também constituiu um risco de subida de inflação. “Se observarmos o gráfico seguinte, o chamado défice de emprego é enorme hoje em dia, tal como era nos anos 70 e 80”.
A brecha de emprego nos EUA continua aberta
O que nos espera: um mar tranquilo ou um mar agitado?
Para Stefan Eppenberger e Michaela Huber, a resposta a esta pergunta depende do horizonte temporal de cada um. “A curto prazo (ou seja, nos próximos meses), o desaparecimento dos efeitos de base pode traduzir-se num aumento da inflação. Com um horizonte de médio prazo (ou seja, no segundo semestre de 2023 e provavelmente também algum tempo depois), esperamos que a inflação continue a diminuir e não prevemos um aumento significativo dos preços no consumidor, em linha com o nosso cenário económico de referência para 2023”.
A longo prazo (ou seja, num horizonte plurianual), os especialistas consideram que acontecimentos como a crescente desglobalização ou a denominada inflação verde têm um potencial crescente. “Os investidores não devem, por isso, assumir necessariamente que a inflação regressará totalmente aos níveis das últimas décadas. Dados estes diferentes horizontes temporais, acreditamos que é ainda mais importante ter uma lista de controlo”, concluem.