As compras do BCE no âmbito do QE já arrancaram. Conheça a opinião de Jorge Silveira Botelho, CIO da BBVA Asset Management, sobre a "agitação das águas" proveniente deste programa.
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"Surfing the liquidity” é, sem sombra de dúvida, uma imagem radiante que nos enche o espírito, em que nos imaginamos perante um sol radioso e um mar azul com tons esverdeados, a surfar a onda perfeita. Com toda esta emoção que nos percorre o espírito, até nos esquecemos que não detemos os atributos para surfar a onda, porque simplesmente não sabemos fazer surf… Mas, mesmo para aqueles que têm umas “luzes”, essa bela onda que se agiganta nesse mar maravilhoso, não é certamente para “meninos” e muito menos para aqueles cujo excesso de confiança não os faz temer.
É preciso uma certa dose de inconsciência para nos arrancar a vontade, mas é necessário deixar entranhar-se a adrenalina, porque esta é que nos enquadra com a verdadeira dimensão da façanha e do risco que corremos.
Enquanto ficarmos apenas por uma prancha partida tudo bem, o pior é o resto…
Esta semana, o Banco Central Europeu efectuou as primeiras compras no âmbito do seu programa de Quantitative Easing, e curiosamente, as primeiras obrigações para as quais se predispôs a abrir os cordões à bolsa foram as alemãs.
Mas, o que não deixa de ser também curioso, é que o BCE na sua última reunião definiu como limite mínimo de rentabilidade ao qual está disposto a adquirir obrigações, o limite equivalente ao da sua taxa de financiamento, ou seja, a taxa de depósito que correntemente se encontra em terreno negativo (-0,2%). A questão de fundo não é o BCE comprar obrigações de médio e longo prazo com rentabilidades implícitas negativas, mas argumentar a sua compra tendo por base uma taxa de juro de muito curto prazo temporariamente negativa (a taxa de depósito), uma vez que esta taxa poderá mudar de um momento para outro.
Quando o Banco Central Europeu adoptou uma taxa de depósito negativa em meados do ano passado, tinha em mente o exercício de uma política monetária com uma forte vertente cambial e ainda não vislumbrava que iria ter uma chancela para adotar um agressivo Quantitative Easing.
Não é preciso exercitar muito o espirito para se perceber que é contraproducente manter uma taxa de depósito negativa e simultaneamente comprar obrigações de longo prazo. Na prática, é como se estivessemos a alavancar os efeitos do Quantitative Easing, numa altura em que os spreads estão normalizados e o que se deseja é que o crédito flua de uma forma ordenada na economia e que se evitem efeitos perversos.
Não é por acaso que outros programas de Q.E. encetados por outros países estiveram, e os que ainda vigoram também o estão, suportados por uma taxa de depósito positiva, com o objectivo de garantir o sucesso de compra de obrigações, e simultaneamente, assegurar a normalização dos mecanismos de transmissão de crédito sem provocar distorções no mercado.
Acresce a isto o facto de que uma taxa de depósito negativa não cria qualquer incentivo para os bancos venderem as suas obrigações, antes pelo contrário, uma vez que estes se sentem atraídos a cair num “moral hazard” e a comprar mais obrigações em face da escassez de alternativas. Basta pensar que estamos no princípio de uma recuperação económica, onde o nível de alavancagem do sector privado na Europa ainda é muito elevado e por isso a procura de crédito é, estruturalmente, ainda muito débil.
O maior perigo de uma taxa de depósito negativa é que esta possa esmagar literalmente a rentabilidade do negócio dos bancos, o que forçosamente também os irá inibir de emprestar no futuro. Uma das consequências de uma taxa de depósito negativa é a criação excessiva de liquidez no sistema e uma rápida compressão nos spreads, sem que exista uma contrapartida de volume. Por outro lado, não nos podemos esquecer que, num cenário de taxas de juro zero, os spreads são taxas de juro absolutas, tal como a morosidade, e com spreads muito baixos é impossível não perder dinheiro…
Os investidores devem ter cuidado ao embarcarem cegamente no dogmatismo das políticas monetárias dos bancos centrais, porque estas frequentemente mudam e muitas vezes de um momento para outro em função das circunstâncias. Recordemo-nos o que se passou recentemente com o Banco Central Suíço e a sua moeda.
Assim, para os investidores que perseguem uma valorização ilimitada do dólar e seguem amontoando durações longas nas suas carteiras em busca desesperadamente de yield, e seguros do dom da infalibilidade da política monetária dos bancos centrais, não subestimem o facto de que os pontões artificiais por estes criados, alteram muitas vezes o curso das marés e para além dos agueiros, podem formar-se ondas muito traiçoeiras.