“Uma lufada de ar fresco…”

Captura_de_ecr_C3_A3_2015-01-9___C3_A0s_18
Vítor Duarte

Quando Ícaro se lançou no ar com asas de penas secas de gaivota, besuntadas com a cera do mel das abelhas, julgou ter ao seu dispor um par de asas que o emancipavam da sua costela humana, libertando-o definitivamente do cativeiro. Porém, como todos sabem, o deslumbramento do firmamento saiu-lhe caro…

A interpretação da famosa queda de Ícaro vai muito para além da constatação evidente da ambição desmedida do ser humano. Esta história da mitologia grega personifica também a vontade de testarmos os nossos limites, permitindo que o conhecimento desta acção faça com que outos possam ir muito mais além no futuro.

Neste verão vai ser preciso ter asas para voar nos mercados financeiros, mas ao contrário do que se possa pensar, o segredo pode estar em voar de noite, enquanto todos os outros besuntam as suas asas com os cremes pegajosos para evitar as radiações solares. Muitos dos consensos trades parecem esgotados, com excepção feita ao mercado accionista Europeu, e o segredo dos investimentos para esta segunda metade do ano pode estar escondido nos denominados contrarian trades, ou se quiserem nos trades impopulares. Mas ser contrarian é acima de tudo ser proactivo e procurar retirar partido do overshooting de determinados activos cujo preço sobe ou desce de forma significativa. Para além “do curto em duração de taxa de juro” que agora deixou de ser um contrarian trade, dadas as duras circunstâncias, mas que também ainda está longe de ser um crowded trade, existem três contrarian trades que merecem alguma reflexão e quem sabe alguma dedicação.

O primeiro contrarian trade e o mais óbvio é também o mais popular de todos: o euro/dólar. Estamos naquela fase em que os investidores não se questionam e apostam pela paridade nominal com o argumento fatal: o porque sim! Esta tão forte convicção, parece-nos nesta fase pouco fundamentada, tanto mais que a alteração da política monetária da FED é já há muito uma “crónica de uma subida anunciada”, enquanto na Europa está tudo ainda por descontar.

Sobretudo numa altura em que se multiplicam as evidências de que, a seu tempo, o Banco Central Europeu vai acabar por se sentir obrigado a fazer uma afinação na sua política monetária, fruto das continuadas dinâmicas de crescimento e inflação. O facto crucial para esta alteração de percepção vem do ponto de inflexão da dívida pública e dos superavits primários, que são um catalisador para uma maior dinâmica da procura interna nos estados membros, em que as políticas fiscais deixam de ser um factor de subtracção para passarem a ser um factor aditivo para o crescimento económico. Por outro lado, os receios desinflacionistas começam a esbater-se, uma vez que o preço do petróleo já subiu este ano cerca de 20% em euros, e a própria inflação core (que excluí o efeitos dos preços do petróleo e bens alimentares) regista um acréscimo de 0,8% em termos homólogos. Por fim, a recente adopção do Quantitative Easing por parte do Banco Central Europeu, mais do que uma medida de cariz monetário de efeitos questionáveis, acabou por ser uma medida com um alcance político sem precedentes, devolvendo a credibilidade à moeda única como “reserva de valor”, ao legitimar o carácter supranacional do Banco Central Europeu.

Esta dinâmica de crescimento e de inflação ganhou um novo alento na Zona Euro, não sendo por isso difícil de antecipar uma alteração sobre a percepção da necessidade da dimensão actual dos estímulos, designadamente uma taxa de depósito negativa em -0,20% e um programa de Q.E. de 60 mil milhões/mês. Nesse sentido, quando dizemos que o euro vai para a paridade, há que saber a qual das paridades nos estamos a referir, porque a paridade de poder de compra está mais perto da vizinhança de 1.20...

O segundo contrarian trade que está fora de moda, mas que a qualquer momento pode deixar de estar, é o investimento em commodities. O ciclo económico global vai acelerar nesta segunda metade do ano, encontrando-se sinais inequívocos um pouco por todo lado. Na Europa, a retoma da procura interna e do investimento público, vai devolver à economia um espaço que há muito estava adormecido, em que o desemprego e o excesso de capacidade vão agora poder ser gradualmente absorvidos. Nos EUA, os recentes dados de actividade demonstram que não só a economia absorveu a valorização da sua moeda, como se começa a dissipar o impacto negativo do forte desinvestimento ocorrido no primeiro trimestre na indústria petrolífera de “Shale Gas”, onde o investimento em estruturas retirou cerca de 0,60% ao PIB no 1º trimestre.

Na Ásia, a economia chinesa parece estar a dar sinais de estabilização da sua actividade, enquanto o relaxamento da política monetária está a começar a acomodar o mercado imobiliário. No Japão, a mudança estrutural sobre a percepção da evolução da inflação e das taxas de juro reais, está a reflectir-se cada vez mais nas dinâmicas da procura interna, onde o consumo privado e o investimento começam a ressurgir. Por seu turno, na Índia ainda está tudo por acontecer, em que as taxas de crescimento de cerca de 8% e uma dívida sobre o PIB de menos de 30%, deixam antever um enorme dinamismo em infra-estruturas durante os próximos anos.

Por fim, espera-se que a população mundial cresça cerca de 15% nos próximos 10 anos enquanto a oferta de commodities é bastante inelástica, tanto em petróleo, como em metais e produtos agrícolas. A questão de fundo é que, ao longo deste processo de globalização e a qualquer momento, podemos ter um aumento estrutural da procura fruto da exigência de melhores condições de vida por parte de cerca de metade da população mundial.

O terceiro contrarian trade é o investimento em activos emergentes, tanto no mercado accionista como no mercado de dívida, que passou de um crowded trade para um trade impopular, em virtude dos receios empolados de que a subida da taxa directora da FED venha a alterar as condições de funding de forma material. Este, mais parece um trade do “Déja Vu”, em que muitos investidores se deixam levar pelas reminiscências, mas ignoram por completo os contextos.

Em primeiro lugar, o dólar já não é a única moeda de funding global. Agora também temos o Euro e o Yen, tendo a grande maioria dos países emergentes mais e mais diversificadas reservas.

Em segundo lugar, a dívida pública externa dos mercados emergentes reduziu-se materialmente desde a última crise, tendo actualmente muitos destes países ganho o estatuto de Investment Grade. É certo que a dívida privada externa está elevada, mas isso também se deve à crescente internacionalização dos balanços e das receitas das empresas dos mercados emergentes, como por exemplo, o sector petrolífero. Por fim, este ciclo da FED é um ciclo em que o processo de normalização vai ser lento e gradual, e em que a própria FED reconhece que a sua política monetária provoca efeitos perversos a nível global que acabam por induzir uma nova onda de efeitos secundários na sua própria economia. Assim, tanto os spreads de crédito nos mercados emergentes como o elevado prémio de risco implícito nas valorizações dos índices accionistas dos mercados emergentes, parecem desajustados em face ao perfil económico-financeiro e demográfico da grande maioria destes países.

Neste contexto, há que ter alguma prudência em abraçar cegamente os argumentos que definem os trades, sejam eles os populares ou impopulares, uma vez que, quando são muitos a pensar da mesma forma, há uma tendência natural para acomodarmos o nosso sentido de autocrítica, que o inibimos com o denominado efeito multidão.

Se por caso, Ícaro no seu tempo tivesse voado de noite, provavelmente a humanidade não teria aprendido tanto e ainda perdurava no ar a perversa ilusão de que tudo era possível… Mas se Ícaro fosse nosso contemporâneo, já teria aprendido muito, empunharia seguramente asas mais resistentes e optaria por voar ao luar numa noite quente de verão, longe da confusão e dos riscos de colisão!