Simplesmente vermelho ou... Um paraíso para devedores e um inferno para credores

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(TRIBUNA de Hans-Jörg Naumer, Director, Global Capital Markets & Thematic Research da Allianz Global Investors (AllianzGI). Comentário patrocinado pela Allianz Global Investors (AllianzGI).)

Já lá vai muito tempo desde que a caderneta da minha conta poupança tinha algum significado para mim; pelo menos continua a ser um lugar útil para guardar o dinheiro das crianças, mesmo que não pague juros durante um longo período. Porém, desta vez, enquanto estava no balcão do banco a esvaziar o porquinho-mealheiro dos meus filhos, ocorreu-me estar prestes a prejudicar o banco com os meus depósitos – ainda que sem intenção. Na verdade, enquanto os bancos não cobrarem juros negativos e tolerarem dinheiro a juros zero, cada depósito significa uma perda para o banco. Enquanto o próprio banco tiver de pagar juros sobre os seus depósitos no sistema dos bancos centrais Europeus – i.e., enquanto estiver a ser prejudicado pela sua liquidez, não passando esta despesa para os seus clientes –, está a perder dinheiro.

Em 5000 anos de história da “dívida” este é o primeiro período em que os credores têm de pagar para poderem investir o seu dinheiro.

Gráfico 1: Os 5,000 anos de história da dívida

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Esperava-se que este período tivesse chegado ao fim. E, de facto, até agora, a Reserva Federal dos EUA tinha adotado uma política mais rígida, não interrompendo apenas o seu programa de compra de títulos e aumentando gradualmente a sua principal taxa de juro, mas também começando a diminuir o tamanho das carteiras de obrigações. Parecia ser só uma questão de tempo até o Banco Central Europeu (BCE) aumentar também a sua taxa de juro de referência e, eventualmente, recuperar o nível normal do seu balanço. Mas isso parece algo do passado. Numa espécie de precaução (insurance cut) contra uma esperada desaceleração económica nos EUA, resultante da guerra comercial EUA-China, a Reserva Federal procedeu a um corte inicial nos juros no verão de 2019 – não sendo descartados cortes adicionais. Ao mesmo tempo, em Sintra, o presidente do BCE, Mário Draghi, anunciou um afastamento na normalização da política monetária. Isso assentou igualmente em preocupações com o crescimento, refletidas em parte numa taxa de inflação que permanece abaixo do alvo do BCE de 2%/ano. A maioria dos bancos centrais dos mercados emergentes também reduziu os juros. Seja como for, embora não se espere do Banco do Japão um desvio da sua política monetária extremamente expansiva, estão a ser discutidas novas abordagens para integrar de forma mais estreita a política fiscal e monetária. Mais um passo na direção do “dinheiro de helicóptero”?

Portanto, a fase de repressão financeira, em que os credores ajudam a pagar a montanha da dívida em vez de serem recompensados ​​pela sua moderação, está a entrar na próxima ronda. Cada vez mais, os media relatam que, supostamente, os bancos planeiam transferir os juros negativos para os depósitos. De facto, isto seria um tipo de "imposto sobre os juros", que atuaria como um imposto sobre a riqueza nos depósitos em dinheiro.

Paraíso para Devedores e Inferno para Credores

Nos mercados de obrigações, a mudança na política monetária chegou há muito tempo. Desde aí, as obrigações a 30 anos do governo alemão caíram igualmente para um território de rendimento negativo. Isso significa que 98,8% de toda a curva de yields das obrigações de referência na zona euro é negativa. Mas a situação também não parece muito melhor noutros sítios. Na zona euro, isso verifica-se em cerca de 60% dos títulos de dívida pública. Globalmente, uma em cada três obrigações governamentais apresenta um rendimento negativo. Um volume de títulos de dívida pública de cerca de 16 milhões de biliões de dólares encontra-se em território de rendimento negativo, onde os rendimentos são “simplesmente vermelhos”. Isso significa, especificamente, que as dívidas antigas estão a ser pagas através da contração de novas. Através de yields negativas, os credores estão a pagar pela capacidade de investir o seu dinheiro. Para quem deseja investir o seu dinheiro por 100 anos, as obrigações do governo austríaco oferecem menos de 0,8% – com um risco de mudança de preço proporcionalmente mais alto (dados de meados de agosto de 2019). Por outras palavras, um paraíso para os devedores e inferno para os credores.

Gráfico 2: Paraíso para os Devedores e Um Inferno para os Credores

Yields genéricas de títulos do governo, em %

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Gráfico 3: Globalmente, uma em cada três obrigações governamentais tem yields negativas

Proporção global de obrigações governamentais e empresariais com yields negativos e juros do BCE

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A caça ao rendimento do investimento prossegue

Para os investidores, isso significa que prossegue a caça ao rendimento do investimento. A linha mais elementar de defesa para o investimento de capital passa pela manutenção do poder de compra. Por outras palavras, evitar apenas rendimentos negativos não é suficiente; é preciso igualmente compensar a inflação, não importa quão baixa esta possa ser atualmente. Não é uma tarefa fácil.

Aqui está um exemplo simples do cálculo. Suponha que um investidor investe 100 euros hoje num título do governo alemão a 10 anos com as atuais yields de obrigações. Após o ajuste da perda de poder de compra, em 10 anos o investidor teria um valor real equivalente inferior a 77 euros – assumindo que, ao longo dos anos, a inflação média rondou em torno da meta de 2%/ano do Banco Central Europeu. A situação também não parece muito melhor noutros países da zona euro, onde as diferenças nas classificações de crédito devem ser consideradas.

Em suma, não parece haver fim à vista para esta tendência. Pelo contrário, dada a tendência económica e as baixas projeções dos analistas profissionais para a inflação nos próximos cinco e dez anos, tais como as reunidas pelo BCE, é razoável esperar que prossiga a mesma política monetária.