BIS analisa possíveis modelos para a constituição de moedas digitais dos bancos centrais

António Marques Dias, Catarina Quaresma, António Mello Vieira, Filipe Barreto, Virgilio Garcia, CFA, Nuno Sousa Pereira, Sixty Degrees.
António Marques Dias, Catarina Quaresma, António Mello Vieira, Filipe Barreto, Virgilio Garcia, CFA, Nuno Sousa Pereira, Sixty Degrees. Créditos: Vitor Duarte

TRIBUNA da autoria da equipa da Sixty Degrees.

Nesta fase, já é do conhecimento geral que os bancos centrais têm vindo a reunir esforços com vista à criação de moedas digitais, denominadas CBDC (Central Bank Digital Currencies). No presente mês, o BIS (Bank for International Settlements) publicou um relatório intitulado Central Bank Digital Currency: the quest for minimally invasive technology, no qual explora as possibilidades para o desenho e utilização prática das CBDC.

O paper em questão apela à constituição de CBDC que minimizem a disrupção do atual sistema monetário twotier. Nesse sentido, as CBDC não deverão provocar o afastamento do setor privado das funções de intermediação financeira e serviços de pagamentos, ou seja, não deverão causar uma fuga massiva de fundos dos bancos comerciais em direção ao banco central. Por outro lado, há que reconhecer também que a interface com o cliente ao nível dos pagamentos, onboarding de contas, compensações, liquidações, compliance, prevenção contra branqueamento de capitais e financiamento ao terrorismo é claramente executada de forma mais eficiente pelo setor privado.

De certa forma, a CBDC deverá ser análoga ao cash (moeda física), no sentido em que a sua utilização enquanto meio de pagamento é útil e segura, mas o seu uso como aplicação de poupança é diminuto. A moeda física apresenta curso legal, garantido pelo banco central, e como tal poder ser aceite de forma segura para meio de pagamento. Pelo contrário, os depósitos são garantidos pelos respetivos bancos comerciais e, nesse sentido, poderão não ser totalmente seguros, enfrentando o risco de solvência ou falência das instituições bancárias. Aqui reside uma diferença clara entre o que virá a ser uma CBDC e os atuais instrumentos de pagamento eletrónico. Enquanto os últimos poderão deixar de ser aceites como forma de pagamento quando existe desconfiança face ao banco comercial em questão, a primeira não dependerá de todo da solidez do sistema bancário e deverá servir como âncora de confiança à semelhança da atual moeda física em uso hoje em dia.

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Ao posicionar a CBDC como o instrumento de pagamento digital mais seguro poder-se-á correr o risco de torná-la atrativa como veículo de poupança. No limite, as famílias poderiam ser incentivadas a aumentar os seus depósitos junto do banco central à custa da sua redução nos bancos comerciais. Deste modo, o modelo de negócio dos bancos comerciais ficaria comprometido devido à escassez de fundos, com impacto negativo na concessão de crédito e na economia.

De sublinhar que a moeda física tem interesse escasso enquanto reserva de valor, já que não oferece juros, é de custosa armazenagem em elevadas quantidades e acarreta o risco de danificação ou roubo. Consequentemente, tal como se pode observar no gráfico abaixo, a detenção de moeda física por parte das famílias nos EUA e Europa é reduzida quando comparada com os depósitos bancários.

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Se uma elevada porção dos depósitos bancários das famílias fosse transferida para o banco central, este último teria de reinvestir estes montantes, assumindo um papel diverso daquele que até agora tem desempenhado. De salientar que o atual sistema monetário pressupõe a divisão de responsabilidades, com os bancos centrais responsáveis pela estabilização do eixo core e com os bancos comerciais a levarem a cabo a interação com os clientes. A experiência passada parece indicar que esta arquitetura two-tiered é a mais eficiente, com o valor da moeda melhor salvaguardado por uma instituição responsável perante o público e focada na estabilização do sistema monetário.

O envolvimento do setor privado no sistema monetário é defensável à luz das vantagens dos mercados livres. De facto, ao nível da concessão de crédito admite-se que os bancos comerciais tenham a capacidade de avaliar a solvência dos devedores, estabelecendo um preço face ao risco associado. A evidência demonstra que as instituições do setor público poderão não ter essa capacidade. Por outro lado, a investigação até agora levada a cabo aponta para que os mercados competitivos permitam uma continuada inovação e melhoria de eficiência económica. Neste sentido, o desenho de uma CBDC deverá permitir que os bancos comerciais mantenham o seu papel de intermediários financeiros entre aforradores e investidores.

Para que tal seja possível, encontram-se em debate várias possibilidades, tal como: (i) a remuneração da CBDC a uma taxa de juro nula ou inferior à oferecida pelos bancos comerciais; (ii) o estabelecimento de um montante máximo por família ou; (iii) a aplicação de uma taxa de juro desfavorável acima de determinado valor depositado.

Por outro lado, tendo em conta que a eficiência do sistema de pagamentos também é melhorada quando a interface com o cliente é assumida pelo setor privado, terá de ser encontrada a melhor forma de equilibrar o curso legal sobre o banco central com o envolvimento dos prestadores privados de serviços de pagamento.

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Em suma, 86% dos bancos centrais inquiridos pelo BIS admitiram já estar a preparar o lançamento de uma moeda digital, sendo que alguns já possuem mesmo protótipos em funcionamento. Será interessante perceber em que moldes serão lançadas as CBDC, sendo que como referimos atrás existem algumas exigências para que as propriedades-chave da moeda física sejam replicadas. Idealmente, as CBDC deverão ser o meio de pagamento universal na era digital, salvaguardando ao mesmo tempo a privacidade dos consumidores e preservando as funções básicas do setor privado na intermediação financeira e nos pagamentos de retalho. Neste sentido, o BIS defende aquilo que denomina como um modelo ou arquitetura minimamente invasiva provocando a menor disrupção possível no sistema monetário atual.

De qualquer forma, acreditamos que o debate mais sério no processo de criação das CBDC andará em torno da adoção de moedas puramente digitais, onde as autoridades conseguem monitorizar apenas e somente a última transação, ou de criptomoedas que utilizam a tecnologia blockchain, onde é possível seguir o respetivo rasto desde o momento da sua criação. A respeito desta última alternativa, veja-se o exemplo do ataque cibernético ao Colonial Pipeline onde o FBI conseguiu recuperar com alguma facilidade grande parte dos bitcoins pagos a título de resgate aos piratas informáticos. Neste sentido, a substituição do papel-moeda por criptomoedas permitiria grandes melhorias ao nível do combate ao branqueamento de capitais e financiamento ao terrorismo. Contudo, isto também abre a porta aos mais variados governos para controlar todos os movimentos de dinheiro, em especial os legais, impedindo o entesouramento e conseguindo cobrar de forma fácil todo o tipo de impostos que se lembrem de implementar, algo que se tornou muito premente em resultado da pandemia que estamos a viver.