Higher for how Long(er)?

Jorge Silveira Botelho BBVA_noticia
Jorge Silveira Botelho. Créditos: Vítor Duarte

COLABORAÇÃO de Jorge Silveira Botelho, responsável de Gestão de Ativos da BBVA AM Portugal.

Higher-for-Longer, é mais uma daquelas frases feitas que analistas, economistas e Bancos Centrais abraçam, em busca de recuperar uma credibilidade fragilizada, sob uma narrativa ainda de grande incerteza, e onde inequivocamente nos deparamos com o pico de mais um ciclo de subida de taxas de juro. Talvez por isso, o Higher-for-Longer, mereça ser devidamente analisado à luz do que é a realidade atual, e não de um passado longínquo que alguns creem que caprichosamente se irá repetir.

Nos últimos quatro anos, não foi fácil aferir e muito menos interpretar o comportamento do atual ciclo económico, porque vivemos tempos em que as gerações atuais simplesmente nunca presenciaram. Com efeito, uma pandemia, um choque energético, vários conflitos bélicos e um desafio enorme no controle das alterações climáticas, são fatores que ao interagirem numa linha de tempo tão curta, não têm qualquer paralelismo similar na história.

Daí que é legítimo não ter preconceitos em assumir que houve muitos enganos, erros de estimação do impacto das políticas económicas e sociais, alterações súbitas de preferências dos consumidores difíceis de se prever, e que geraram por sua vez mais erros de análise suplementares. 

É neste contexto que o Higher-for-Longer, é mais uma expressão anacrónica que pouco ou nada explica, encontrando-se desajustada da realidade económica global, porque está inflamada sob um pretexto hipotético do surgimento de uma nova inflação estrutural.

Existe uma ideia preconcebida de que neste mundo multipolar com uma maior internalização de processos de produção a inflação ganha um cariz estrutural. Até certo ponto, até pode ser verdade, mas que não se exagere o impacto da internalização de processos produtivos de bens, porque um mundo multipolar não significa o fim da globalização, mas apenas que se processa de forma diferente. Basta ver como o México já se tornou no principal parceiro comercial dos EUA (Fonte: Census gov) superando a China e como a Índia numa meia dúzia de anos se poderá tornar na terceira economia mundial (Fonte: S&P Global), e seguramente uma das maiores fábricas do mundo não apenas em bens, mas também em serviços... Este tema dos serviços é um facto extremamente relevante pela sua dimensão na economia, e sobre o qual se tem escrito muito pouco. Em muitos casos os serviços são cada vez mais equivalentes a um bem transacionável e consequentemente sujeitos à fixação de preços internacionais. A tecnologia e a mobilidade laboral, começam a evidenciar tendências desinflacionistas significativas em algumas das componentes dos serviços, que no passado, dada a sua não transacionalidade, eram dos fatores que mais contribuíam para a subida da inflação.

O caso americano é um bom ponto de partida para esta análise, porque suscita algumas considerações sobre estes temas, sobretudo se enquadrarmos as dinâmicas da inflação, das taxas de juro reais e do investimento.

Em matéria de inflação, é curioso verificar que nas duas últimas décadas, as componentes da educação e dos serviços médicos foram dos fatores que mais contribuíram para a subida da inflação americana.

Evolução de diferentes componentes da inflação americana em duas décadas, entre outubro de 2000 e outubro de 2020

Inflação EUA31/10/2000 - 31/10/2020
Shelter2,61% anual
Education4.42% anual
Medical Services3,77% anual
Energy2,10% anual
Food2,36% anual
Fonte: Bloomberg, BBVA AM Portugal

No entanto, nos últimos anos o panorama é distinto, uma vez que, enquanto os preços da educação e dos cuidados médicos desaceleraram, as rendas aceleraram. De facto, depois da forte subida da inflação provocada pelas roturas das cadeias de produção e de distribuição e do enorme choque energético, o que realmente resta na inflação dos EUA são os impactos diretos e indiretos da subida dos preços das rendas nas famílias, porque na realidade tudo o resto praticamente se compensa entre si, para se chegar a uma inflação de 2% ou abaixo.

O grande problema do mercado imobiliário é que, ao contrário de muitos outros setores, não conseguiu normalizar a sua oferta com a pandemia, antes pelo contrário. Com efeito, as condições já débeis da oferta ainda se agravaram mais com a subida pronunciada das taxas de juro, ao verificar-se um forte desinvestimento e consequentemente um efeito de substituição. É natural que ocorra esse efeito de substituição com uma maior procura de casas para arrendar, algo semelhante ao que está também a ocorrer em muitos países da Europa.

Uma simples análise diz-nos que, atualmente, cerca de 74% da inflação homóloga subjacente americana referente ao mês de outubro explica-se diretamente pela subida dos preços das rendas (Shelter=6,7%), sendo que para o caso da inflação geral este valor também não é substancialmente diferente, ou seja é 73%. Parece existir aqui um efeito perverso em que são as taxas de juro mais elevadas que fomentam a atual subida da inflação e dificultam a sua descida para o target de 2% da Fed.  Acresce que não se está a ter em linha de conta com os efeitos indiretos da subida das rendas que se refletem nos custos dos bens e serviços, como os aumentos dos custos de logística e armazenagem, com o acréscimo dos custos do retalho e com as compensações salariais que têm de ser dadas aos trabalhadores, porque o aumento das rendas empurra-os para cada vez mais longe do seu local de trabalho, ao ponto de no limite serem obrigados a procurem um outro local para viver e trabalhar.

Evolução de diferentes componentes da inflação americana nos últimos três anos, entre outubro de 2020 e outubro de 2023

Inflação EUA31/10/2020 - 31/10/2023
Shelter5,7% anual
Education 2,59% anual
Medical services1,67% anual
Energy13,45% anual
Food6,47% anual
Fonte: Bloomberg, BBVA AM Portugal

Por outro lado, há que aferir que este desinvestimento provocado pela subida pronunciada das taxas de juro reais não se cinge ao mercado imobiliário, mas afeta todo o tipo de investimento produtivo e em muitos casos precioso para as economias, inclusive aquele que se prende com a urgência da transição energética.

De facto, o investimento como conceito é crucial para o aumento da produtividade, fator-chave para o decréscimo da inflação. Há que referir que o nível das taxas de juro reais para além de inviabilizar a consecução de projetos, também obriga de imediato a uma maior desalavancagem das empresas, tanto mais que 2025 e 2026 vão ser anos de forte refinanciamento de dívida, a qual foi contraída a taxas de juro muito baixas durante a pandemia.

Do lado do investimento, também não podemos esquecer que estamos a entrar numa fase de desequilíbrio entre a poupança e o investimento, algo que em 2005 Ben Bernanke explicava como o Savings Glut.

Há que ter em conta que a geração de baby boomers foi uma enorme força de acumulação de riqueza e de investimento do pós-guerra, mas esta geração está gradualmente a transformar-se em senior boomers, entrando numa fase de desacumulação e de desinvestimento para assegurar o difícil compromisso entre a longevidade e a maior qualidade de vida possível. Esta fase de desacumulação vai ter impacto na função temporal do consumidor, com o detrimento do consumo presente a favor do consumo futuro nesta geração, o que se irá traduzir numa cada vez maior desalavancagem, na tomada de menos riscos e consequentemente de uma maior dinâmica desinflacionista…

Não é por acaso que, depois da crise de 2008, assistimos a esse processo de desalavancagem, brevemente interrompido pela oportunidade irresistível que a pandemia conferiu a muitas famílias americanas, de refinanciarem as suas hipotecas a taxas de juro muito baixas, depois de uma forte subida dos preços das casas.

Mas as novas gerações não têm essa capacidade de acumular riqueza, porque a subida dos salários reais é efémera e não permite obter capacidade de adquirir ativos reais, para gerarem investimento e consumo adicional no futuro.

É importante ter presente que o investimento em habitação própria é também uma das formas eficazes de poupança de longo prazo, e atualmente as taxas de juro para a constituição de uma hipoteca para a compra de uma habitação própria nos EUA estão na vizinhança de 8%. 

Os grandes motores de geração de riqueza nos EUA desde o início da pandemia até hoje foram os ativos reais e não os salários (31/12/2019-31/08/2023)

Fonte: Bloomberg, BBVA AM Portugal

Para se discutir os temas da inflação e das taxas de juro é necessário humildemente entender que são muitas as variáveis a interagir e que existem em curso várias alterações estruturais que se processam há décadas, e que a pandemia e a guerra apenas criaram uma ilusão aparente da reversão das mesmas, mas na realidade o que estes eventos vieram fazer, foi reforçar as tendências que vinham por detrás deste mundo envelhecido, endividado, desigual e tecnologicamente cada vez mais disruptivo.

Daí que, se compreendermos a origem da inflação, por onde se move e em que moldes irá ressurgir no futuro, em função da disrupção tecnológica (associada à inteligência artificial e à transacionalidade do setor dos serviços) e da demografia (associada à alteração dos padrões de consumo temporal e das alteração de perceção entre a posse e o usufruto), facilmente percebemos que o Higher-for-Longer não só não vai resolver os problemas económicos estruturais que realmente enfrentamos, como os pode vir a agravar ainda mais no futuro.

Neste enquadramento afere-se, que o Higher não pode ser for-Longer, nem nos EUA nem em muitas outras regiões do globo, uma vez que, a expressão Higher-for-Longer, apenas indica um caminho que ninguém quer realmente prosseguir, ou seja, desinvestimento, menor produtividade, maior risco para a transição energética, mais desemprego a prazo, salários reais baixos, incapacidade de acumulação de riqueza das novas gerações e inevitavelmente o agravamento da desigualdade.