Forward Misguidance

Jorge Silveira Botelho BBVA_noticia
Jorge Silveira Botelho. Créditos: Vítor Duarte

TRIBUNA de Jorge Silveira Botelho, responsável de Gestão de Ativos da BBVA AM Portugal.

Em vésperas de mais uma reunião da Reserva Federal Americana, é com alguma perplexidade que assistimos nas últimas semanas ao recrudescer de mais uma retórica inflamada por parte de muitos dos Bancos Centrais, precipitados sobre a necessidade de adicionais acréscimos de taxas de juro. No entanto, não deixa de ser curioso, que há pouco mais de um ano atrás deparávamo-nos com uma postura semelhante, mas de sentido inverso, na medida em que, os mesmos protagonistas defendiam com a mesma veemência retórica o cariz transitório da inflação e a necessidade de se manter uma política monetária ultra expansionista.

Em bom rigor, antes da guerra na Ucrânia muitos dos fenómenos inflacionistas que ocorreram, derivaram do forte choque na oferta provocado pela pandemia e por erros de aplicação simultânea de políticas monetárias e fiscais extremamente expansionistas, designadamente nos EUA, onde se estimulou fortemente a procura de bens e serviços numa altura em que simplesmente não havia capacidade de oferta. O que de certa forma nos permitia aferir, que depois de normalizada a oferta de bens e serviços e saneados os erros de política fiscal e monetária, a inflação era em absoluto um fenómeno transitório.

Índice de preço globais dos contentores e índice ISM de prazos de entrega EUA

Depois houve uma guerra que expôs a cru as debilidades do forte desinvestimento na indústria fóssil nos últimos anos, que acabou por provocar um enorme choque energético com implicações transversais em todos os preços dos bens e serviços. E aqui deu-se um fator de imprevisibilidade importante sobre as dinâmicas da inflação, dada a dificuldade de se antecipar a evolução dos efeitos perversos do conflito, o que certa forma acelerou também a necessidade de contenção no curto prazo do risco de um acréscimo das expetativas de inflação de longo prazo, através das subidas das taxas de juro.

Obviamente que este brusco aperto da política monetária sem precedentes na história, também contribui para conter as expetativas de inflação de longo prazo. Mas, na realidade, após uma pandemia, depois dos desequilíbrios pronunciados entre oferta e procura, ultrapassados os erros negligentes de condução de política monetária, contidos os efeitos da guerra na Europa e revertido em grande parte um tremendo choque energético, as supostas alterações estruturais inflacionistas não se materializaram, e objetivamente muitas delas passaram também a ser tratadas como simplesmente temporárias.

O elemento mais ilustrativo disso mesmo, foi a reversão dos preços da energia, o grande catalisador da inflação dos bens e serviços, assistimos a um novo enquadramento do gás natural e da energia nuclear e do forte investimento nas energias renováveis com os elevados e recorrentes investimentos na transição energética, através da Agenda Verde na Europa ou o Programa de Redução da Inflação nos EUA (IRA). Sendo de registar, o facto de que em 2022 o capex upstream de Oil & Gas subiu 39%, o maior crescimento anual da história superando o volume de capex em Oil & Gas de 2014, segundo o International Energy Forum.

Preços da eletricidade em França e Alemanha

Tem-se também criado erroneamente a ideia de que tem sido o emprego uma das principais causas da inflação, mas isso não é real. Como referimos, grande parte da inflação emergiu pela falta de oferta de bens e serviços que gerou uma racional gestão das margens das empresas que em fase de muitas incertezas procuram retirar o máximo partido da situação. Não nos podemos esquecer também, que houve setores fortemente afetados negativamente pela pandemia, como foram os casos das companhias aéreas, a restauração e a hotelaria, sendo natural que estes setores aproveitem da melhor forma a maior normalização destas atividades para recuperarem os seus balanços. Por outro lado, os preços dos serviços foram influenciados também pelo rerating do mercado imobiliário com a pandemia, sendo nos EUA por demais evidente. No entanto, os preços dos serviços já estão a ajustar como comprovam os recentes dados de inflação publicados nos EUA, onde a inflação dos serviços sem os efeitos desfasados das rendas já só sobe 3,2% em termos homólogos (fonte: bloomberg). Por fim, uma referência aos bens alimentares, que demonstram maior resiliência, mas que em boa verdade ajustaram consideravelmente desde a crise dos cereais provocada pela guerra.   

Estas são na génese as razões por que o ajustamento da inflação subjacente tende necessariamente a ser mais lenta e nada têm a ver com a procura e muito menos com as dinâmicas do mercado de trabalho.

Índice dos preços alimentares e agrícolas das Nações Unidas (FAO)

Daí que, depois dos múltiplos eventos que afetaram a inflação, do enorme choque energético que contaminou transversalmente os preços dos bens e serviços, não querer agora esperar para devidamente medir o impacto da reversão dos preços de energia e os efeitos desfasados da subida vertiginosa das taxas de juro, parece um ato de pura insensatez, que não está à altura da credibilidade de um Banco Central.

O caso americano é ainda mais intrigante, porque a Reserva Federal fez uma pausa apenas há um mês para aferir os impactos da sua politica após 10 subidas consecutivas em menos de 15 meses. Convém relembrar que a taxa média diretora da Fed em 2021 era de apenas 0,125%, o ano passado foi de 1,80% e este ano já está em 4,9%.

Atualmente sabe-se que nos EUA o excesso de poupanças do covid já foi esgotado (fonte: Haver Analytics), que o emprego apesar de elevado, os salários reais apenas subiram 0,21% em termos anuais, entre dezembro de 2019 e junho de 2023 (fonte: bloomberg), que o rácio de inventários sobre vendas está em máximos (fonte: Morgan Stalnley), e que o número de falências está a aumentar com cerca de 37% das empresas não financeiras em dificuldades (fonte Fed).

Com tudo isto e após 10 subidas de taxas de juro da Fed, faz algum sentido fazer uma pausa apenas por um mês?

É caso para perguntar se os Bancos Centrais têm consciência de como têm estado a adulterar o seu instrumento mais eficaz e supostamente mais credível, o Forward Guidance.