Os turbulentos últimos anos demonstraram bem as fragilidades e lacunas do ambiente regulatório dos mercados de capitais europeus.
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Não há hoje comentador que se preze que não perore sobre rácios de solvabilidade, prospetos obscuros, ativos tóxicos ou a necessidade de um “regulador europeu”, ou até mais. A atenção está porém centrada num conjunto de questões que, embora cruciais, não esgotam – longe disso – o problema, e cuja resolução seguramente não bastará para acelerar a normalização do mercado e prevenir crises futuras. Outros temas, apesar da sua relevância sistémica, permanecem debaixo do radar, não sendo ainda encarados como verdadeiras prioridades.
Um exemplo são as significativas inconsistências no quadro legal da chamada infraestrutura do mercado de capitais (custódia e circulação de valores mobiliários), que permanecem hoje bem visíveis no espaço europeu e que constituem ainda um obstáculo não negligenciável ao investimento transfronteiriço – particularmente em tempos de crise. Com efeito, o que é chamamos de mercado de capitais europeu assenta, na verdade, numa manta de retalhos regulatória. Em resultado, uma mesma estratégia de investimento pode receber, nos vários mercados locais, enquadramentos jurídicos substancialmente diferentes, com riscos óbvios para os investidores e o regular funcionamento do mercado. Os efeitos desta inconsistência normativa são particularmente visíveis no fenómeno da chamada titularidade indireta de valores mobiliários (indirect holding of securities), realidade incontornável do mercado atual – incluindo o português - que, porém, permanece isenta de um enquadramento jurídico uniforme.
Multiplicam-se aí as incertezas: nessas situações de titularidade indireta, em que formalmente é o intermediário financeiro quem assume a posição de titular dos valores mobiliários, e em que se podem multiplicar os patamares de intermediação até chegar ao ultimate beneficial owner, qual a natureza da posição jurídica que cabe a este investidor final? Pode ele opor o seu direito sobre os ativos investidos a terceiros? E ao emitente? Pode uma posição desta natureza ser bastante para legitimar o investidor a participar numa assembleia geral e aí votar? Os problemas agudizam-se com a profusão da utilização das contas omnibus ou jumbo e, particularmente, num cenário de eventual insolvência do intermediário financeiro que actua como fiduciário do investimento de clientes. Podem aqueles valores mobiliários de que o intermediário financeiro é titular formal responder pelas dívidas próprias destes, ou constituem ele um património autónomo a que os credores gerais do intermediário financeiro não podem aceder? E como tratar as chamadas situações de shortfalls, em que o intermediário financeiro é afinal titular de menos valores mobiliários do que aqueles que deve aos seus clientes (ou a outros intermediários financeiros que actuam por conta do investidor final). E os problemas continuam: como deve operar a constituição de garantias sobre valores mobiliários indirectamente detidos? Qual a lei aplicável quando a cadeia de intermediação apresenta conexão com mais do que um ordenamento jurídico?
Este fenómeno da titularidade indirecta de valores mobiliários não é regulado na lei portuguesa, não encontrando por isso estas questões resposta clara e directa no nosso ordenamento, em evidente prejuízo da segurança e previsibilidade no investimento mobiliário. A situação não é diferente noutros ordenamentos europeus (como o espanhol, o francês, o italiano ou mesmo o alemão), em que a titularidade indirecta, se não é ignorada, é objecto apenas de um tratamento jurídico parcelar. O mercado e os investidores teriam muito a ganhar se esta realidade do mercado fosse trazida da sombra e objecto de uma regulação clara e abrangente. As discussões, actualmente em curso, em torno da chamada Securities Laws Directive são um fórum adequado para procurar um tratamento uniforme do fenómeno no quadro europeu. E a posterior transposição para o nosso ordenamento é seguramente uma oportunidade a não perder para procurar robustecer a infraestrutura do nosso mercado de capitais, procurando encontrar aí vantagens competitivas (de natureza regulatória) capazes de atrair investimento estrangeiro. Se outros o fizeram antes, porque não tentarmos nós?