Ne me Quitte Pas…

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Jorge Silveira Botelho. Créditos: Vítor Duarte

TRIBUNA de Jorge Silveira Botelho, CIO da BBVA AM Portugal.

Há muito tempo que não se ouvia falar tanto de inflação, mas é de tal maneira o entusiasmo, que o maior receio é que de um momento para outro, estraguemos tudo e passemos de novo a falar outra vez de deflação.

Na última década, os Bancos Centrais no Ocidente têm desenvolvido uma multiplicidade de esforços para contrariar as dinâmicas deflacionistas. O Japão tem sido objecto de vários estudos, dado que nos últimos 30 anos o seu Banco Central tem lutado desesperadamente para manter as expectativas de inflação de longo prazo acima de zero, mas isso sem conseguir evitar passar por sucessivos e frequentes episódios deflacionistas.

A maior ambição dos Bancos Centrais é conseguir alcançar alguma inflação de forma sustentada, mas temos de ter a consciência que nos tempos que correm, a música que toca é outra e ninguém pode subestimar as poderosas forças deflacionistas que têm estado a assolar a economia global ao longo das últimas décadas.

A primeira dimensão, é a dívida global que se estima que no ano passado possa ter ficado em cerca de 355% do PIB (Fonte: IIF), mas só em 2022 deverá começar a cair. Esta dimensão é uma das principais forças deflacionistas, uma vez, que tem obrigado aos Bancos Centrais, a acomodarem tudo e todos, originando-se um crónico excesso de capacidade na economia global no lado do produtor, ao mesmo tempo, que no lado do consumidor a dívida  vai hipotecando a capacidade de consumo futuro. Estas duas faces da dívida amarram as economias  a um ciclo vicioso deflacionista.

A segunda dimensão, é a demografia, onde se combina simultaneamente o poderoso efeito do envelhecimento da população, com o aumento da esperança de vida. O que está a ocorrer com este fenómeno é que a inflação está cada vez mais concentrada num número menor de itens, como é o caso dos serviços médicos de saúde. Esta preocupação em assegurar os cuidados médicos de saúde a médio e longo prazo, provoca uma alteração estrutural da função de consumo, provocando uma menor procura por outros bens e consequentemente gerando a deflação.

A terceira dimensão da deflação advém do choque tecnológico e da sua implicação no fator trabalho. Os ganhos de produtividade que estão associados  à inteligência artificial, à digitalização dos serviços e à robotização da indústria, provocam a deslocação do fator trabalho para profissões de menor produtividade e consequentemente de menores salários associados. Por outro lado, a pandemia vai acelerar a nova vaga do chamado “salário emocional”, aquele que se traduz por criar melhores condições de trabalho aos trabalhadores, como menores horas, mais formação, melhor ambiente, mas sem uma melhor remuneração...

Uma quarta dimensão surge com a inevitável introdução da moeda digital e as suas implicações na redução dos custos de transação e numa maior eficiência das trocas comerciais. Já ninguém tem grandes dúvidas que a moeda digital acabará por chegar de uma forma integrada, segura e bem regulada. O objetivo é aproximar a economia real à economia financeira, o que  seguramente vai redimensionar o funcionamento da economia e as diferentes dinâmicas subjacentes à formação de preços tal como as conhecemos.

Por fim, a quinta dimensão e não menos importante, é a desigualdade. O agravamento das desigualdades, onde os mais ricos ficam cada vez mais ricos e a classe média perde cada vez mais poder aquisitivo, tem tido um óbvio impacto na procura de bens. Este é um dos temas que os Estados estarão mais atentos e é de esperar algumas tentativas de reversão parcial desta tendência, no entanto esse processo de reversão durará certamente ainda muitos anos.

A realidade é que nas últimas duas décadas, a inflação média em termos homólogos nos EUA, aquela que é medida pelo deflator core do consumo, foi de apenas 1,7%, enquanto na Zona Euro a inflação core, (exclui os bens alimentares e a energia) foi de apenas 1,4% (Fonte: Bloomberg). Os Bancos Centrais continuam há décadas com maior dificuldade a tentar estimular a inflação, ficando esta praticamente sempre abaixo dos 2%, o que levou a Reserva Federal Americana (FED), em agosto de 2020, a abandonar um objetivo preciso de 2%, para fixar um período médio de 2%. Por outro lado, o Banco Central de Inglaterra referiu quase o mesmo, quando disse que queria assegurar que a inflação estivesse consistentemente acima de 2%. Enquanto que o  Banco Central Europeu até tem medo de dizer o quer que seja, tal tem sido frustrante a sua competência em matéria de criar expetativas de inflação…

É verdade que desta vez, a maior coordenação entre Bancos Centrais e governos vai permitir que os estímulos monetários e fiscais cheguem à economia real, mas estes não vão conseguir mudar aquelas que são as tendências deflacionistas seculares. Vamos poder ter alguns episódios esporádicos de alguma maior inflação via a subida dos preços das commodities, por um desfasamento temporário da capacidade de produção, ou pelo  aumento temporário do consumo privado derivado de uns “cheques” recebidos, mas que não se repetem… Depois de passarem os efeitos temporários de muitos dos estímulos fiscais que estão a ser administrados, os Bancos Centrais vão continuar a ser obrigados a demonstrar, o quanto estão determinados a fazer tudo o que for preciso para manter altas as expetativas de inflação e baixas as taxas de juro reais, até mesmo a "..t`offrirai des perles de pluie venues de pays où il ne pleut pas…".  

Não nos devemos iludir, porque na realidade é cada vez mais difícil tornar sustentados os episódios fugazes de inflação, neste mundo endividado, envelhecido e tecnologicamente disruptivo. Perante estas forças estruturais deflacionistas que se acentuaram com a pandemia, o que está sempre nas orações de qualquer Banco Central é o de suplicar à inflação para que esta “Ne me Quitte  Pas”.