Os riscos da política monetária da Reserva Federal dos EUA e o euro/dólar

Paulo Rosa. Créditos: Cedida (Banco Carregosa)

TRIBUNA de Paulo Rosa, economista do Banco Carregosa.

No ano passado, a economia dos EUA cresceu 5,7%, o ritmo mais rápido desde 1984, estimulada pela reposição de stocks, após a paralisação ditada pelo primeiro confinamento da primavera de 2020, e pela robustez dos consumidores norte-americanos, que haviam sido penalizados pela procura reprimida em 2020. Todavia, o ano de 2022 começa com poucos sinais de crescimento e afetado pela propagação da Ómicron desde o final do ano passado. A enfraquecer ainda mais o cenário, a Reserva Federal dos EUA (Fed) passou da política monetária mais expansionista da sua história para uma postura gradualmente mais hawkish de combate à inflação. Atualmente, o indicador GDPNow da Fed de Atlanta mostra um ganho do PIB no primeiro trimestre de 2022 de apenas 0,1%.

Em nome do pleno emprego, a Fed abdicou da inflação em agosto de 2020. Agora, para emendar a mão, quer tolerância zero perante a alta dos preços. É o trade-off entre o emprego e a inflação representado pela curva de Philips.

Atualmente, a probabilidade de a Fed subir a sua taxa de juro de referência em 50 pontos base, na reunião de março, é de 28%, de acordo com os futuros negociados na bolsa de derivados de Chicago. Apesar de a taxa de desemprego norte-americana ter subido ligeiramente em janeiro, de 3,9% para 4%, os postos de trabalho criados mostraram resiliência e os salários cresceram 5,7%, pressionando ainda mais a Fed na subida das taxas de juro e redução do seu balanço. Porém, uma política monetária demasiadamente contracionista poderá redundar numa desaceleração económica, e a descida da inflação ser realizada com um custo para o emprego, fazendo mais uma vez jus à curva de Philips.

O mercado de dívida pública norte-americana espelha gradualmente um abrandamento económico. Os rendimentos da dívida nos prazos mais curtos do governo dos EUA têm aumentado rapidamente este ano, refletindo as expectativas de uma série de aumentos de juros pela Fed, enquanto os rendimentos dos títulos do tesouro norte-americano nos prazos mais longos movem-se a um ritmo mais lento, face às crescentes preocupações de que o aperto das políticas monetárias possa prejudicar a economia. Nos EUA, o spread entre os 10 anos e os 2 anos é de 0,61%, mínimo desde o início de outubro de 2020, refletindo um indesejável achatamento da curva de rendimentos.

Atualmente, os futuros das Fed Funds Rate indiciam quase 6 subidas em 2022 e a Fed referiu, há dias, que poderá iniciar a diminuição do seu balanço ainda este ano e numa bitola semelhante à do período de 2017 a 2019, ou seja, não renovando parte das obrigações do tesouro dos EUA (treasuries), que tem no seu balanço, quando atingem o seu vencimento.

Em 2018, chegaram à maturidade, no ativo da Fed, cerca de 425 mil milhões de dólares de treasuries e, nesse ano, o balanço do banco central dos EUA encolheu à volta de 350 mil milhões de dólares de 4,5 biliões para 4,15 biliões de dólares. Essa redução foi à custa da venda de 130 mil milhões de títulos garantido por hipotecas (MBS) e o remanescente pela não renovação de parte dos treasuries que atingiram a maturidade ao longo do ano. Não houve venda de treasuries. Em 2018, o défice orçamental norte-americano foi de quase 800 mil milhões de dólares.

Hoje, o balanço da Fed é de 8,9 biliões de dólares e o défice público que a Casa Branca projeta para o exercício de 2022 é de 1,66 biliões de dólares. No decorrer do presente ano, irão vencer quase 1,2 biliões de dólares de treasuries que estão no ativo do balanço da Fed.

O ano passado, o banco central dos EUA comprou mensalmente 80 mil milhões de dólares de treasuries. Face a um défice orçamental significativo, a saída do mercado de um dos maiores compradores de dívida pública norte-americana, após o encerramento das compras pandémicas pela Fed no próximo mês de março, a par da redução do balanço, poderá diminuir consideravelmente a liquidez no mercado, não só nos EUA, mas também a nível global. Relativamente a 2021, estaríamos a falar de menos 2,16 biliões de dólares, cerca de 10% do PIB norte-americano, apenas no que concerne a dívida pública dos EUA. As compras da Fed de MBS, que terminarão também em março, representam menos 480 mil milhões de liquidez anual. Quem financiará o défice público norte-americano este ano? As taxas de juro podem subir em toda a curva de rendimentos.

O risco de uma desaceleração significativa da economia norte-americana perante a política contracionista da Fed é uma realidade. Nos últimos meses, a subida dos juros já abrandou a procura de financiamento de hipotecas para a compra de casa e o aumento do preço dos imóveis tende a desacelerar. As bolsas têm descido nas últimas semanas. A liquidez diminui a cada dia que passa.         

A Fed não reduzirá o seu balanço através de vendas, algo que agrada aos investidores. Mas ficar refém do vencimento dos títulos do tesouro pode não ser também a melhor opção. A Fed deveria priorizar o controlo da curva e vender maturidades onde há mais liquidez e suportar aquelas que têm menos liquidez, e, assim, retirar liquidez aos mercados no caminho da normalização do seu balanço, mas sem pressionar muito as taxas de juro em alta, para evitar um forte abrandamento económico e penalização da população. Seria pior a emenda que o soneto. E numa economia em que a inflação é principalmente impactada pelos custos com habitação (Shelter) e os salários, mais do que os preços da energia e as dificuldades nas cadeias de abastecimento que tendem a desaparecer, uma desaceleração económica, ainda que ligeira, resultaria numa subida da taxa de desemprego, descida dos salários e queda do imobiliário, e, consequentemente, descida das rendas das habitações. No longo prazo, as variáveis deflacionistas dos últimos 20 anos, desde a tecnologia à globalização, deverão regressar à economia dos EUA (a China ainda continua a ser a principal fábrica do mundo e a exportar deflação). A inflação norte-americana deverá, ainda este ano, abrandar consideravelmente e a enérgica política contracionista poderá ficar aquém do esperado pelos mercados.

O dólar face ao euro valorizou quase 10% o ano passado, impulsionado pela forte recuperação da economia norte-americana e pelas perspetivas de significativas subidas de taxas de juro nos EUA. Mas, atualmente, o euro ganha preponderância. A economia dos EUA desacelera mais que a europeia, facto ainda corroborado há uma semana pelo FMI, e as expetativas de forte aumento dos juros pela Fed podem pecar por excesso, numa altura em que a inflação persiste na Zona Euro e o BCE, apesar de não ter indiciado muito isso na última reunião, pode ser menos dovish do que no passado e dar mais alguma sustentação ao euro nos próximos meses.