COLABORAÇÃO de Tiago dos Santos Matias1, diretor do Departamento de Supervisão Contínua da CMVM.
A procura de progressos concretos e significativos na proteção dos direitos ambientais e humanos, associada às tentativas de promover normas ambientais, sociais e de governo (ESG), já existe há vários anos, mas, embora tenham sido adotados vários instrumentos regulatórios a nível internacional e da UE, esta última avançou com firmeza, introduzindo várias medidas regulatórias que podem – e procuram – ter um impacto significativo.
De facto, visando endereçar as consequências cada vez maiores e imprevisíveis das alterações climáticas e do esgotamento de recursos no nosso planeta e promover a adoção de um modelo económico e social mais sustentável, o legislador europeu optou, uma vez mais, por dar o exemplo, prevendo um quadro jurídico que permitirá aos gestores de ativos europeus estarem na vanguarda da integração dos fatores ESG. Por outro lado, irá permitir que os investidores compreendam como e em que medida essa integração é feita pelos gestores e pelas entidades em que os gestores investem, tornando-se o “standard-setter” da corrida aos diferentes tons de verde.
Porém, ao fazê-lo tendo subjacente um processo legislativo dinâmico de building blocks, baseado num quadro legislativo que vai sendo sucessivamente implementado, o legislador europeu tornou a corrida ao verde particularmente desafiante, para todos os stakeholders.
Com efeito, a construção a uma velocidade vertiginosa do quadro regulatório europeu resultou nalguma inconsistência, entre as diferentes peças da regulação em construção e, assim, em insegurança, senão mesmo impossibilidade dos gestores de ativos recorrerem a dados fiáveis, de aplicarem as regras de transparência de forma adequada, dificultando, assim, a perceção e compreensão dos investidores do que é, ou não verde, e, de entre o que é, quão verde é.
Foi, pois, neste contexto desafiante, que – diversamente do gizado pelo legislador europeu, que visava a distinção entre fundos para efeitos de divulgação de informação verde – o regime dos artigos 6.º, 8.º e 9.º do SFDR2 começou a ser crescentemente percecionado pelo mercado como constituindo diferentes tons do verde, sendo, no caso do artigo 6.º, eventualmente, [uma cor] um caminho para lá chegar.
Em resultado de tal circunstância, em 14 de setembro, a Comissão Europeia publicou a tão aguardada consulta pública sobre o SFDR, um dos principais pilares do quadro europeu de financiamento sustentável, a qual contém mais de 95 perguntas (!) e divide-se em duas partes: uma consulta pública; e uma consulta específica mais pormenorizada das partes interessadas familiarizadas com a implementação do SFDR. Em paralelo, foi prevista a realização de sessões de esclarecimento durante o período de consulta, tendentes a facilitar o debate. A consulta terminou em 15 de dezembro de 2023 e a Comissão deverá publicar o seu relatório no segundo trimestre de 2024.
Admitindo-se que não tenha, também, sido indiferente ao Policy Statement (PS23/16) Sustainability Disclosure Requirements and investment labels, publicado em 28 de novembro de 2023 pela FCA e também ele sujeito a consulta pública, a Comissão Europeia questiona na consulta sobre a introdução de um regime de labeling de produtos, reconhecendo que o regime dos artigos 8.º e 9.º do SFDR passou a ser utilizado indevidamente pelos participantes de mercado como labels, tendo em conta se um fundo de investimento é classificado como sendo um fundo do artigo 6.º, 8.º ou 9.º.
Este é, sem dúvida, o epicentro da consulta, que poderá representar uma alteração estrutural do regime de transparência propugnado pela Comissão, a qual, apresenta duas opções, a saber (i) transformar os atuais artigos 8.º e 9.º em categorias de produtos, e (ii) a introduzir novas categorias que poderiam, por exemplo, basear-se na estratégia do produto (como a contribuição para determinados objetivos de sustentabilidade ou o enfoque na transição). A segunda opção parece ter diversas similitudes com os labels propostos pela FCA.
A possível inversão do legislador europeu não deixa de constituir uma leitura atenta dos desenvolvimentos do mercado, constituindo uma auscultação oportuna do mercado, tendo ainda o mérito de representar um contributo significativo para a interoperabilidade, com outros regimes internacionais (como o referido do Reino Unido), evitando custos desnecessários para os diferentes operadores de mercado, e como tal é um desenvolvimento muito bem-vindo.
Por outro lado, tendo em consideração o quadro regulatório em construção, a Comissão questiona se existe clareza suficiente em torno de conceitos-chave do SFDR, como o conceito de «investimento sustentável».
Concomitantemente, a consulta aborda a interação do SFDR com outros quadros regulatórios, como a DMiF2, procurando endereçar uma questão que há muito é levantada pelos operadores, preocupados com a falta de harmonização e duplicação regulamentar. Neste contexto, a consulta versa ainda sobre a coerência das regras de transparência do SFDR e da CSRD, em especial sobre o potencial de eliminação de regras duplicadas.
A consulta contém perguntas específicas sobre (i) os principais indicadores de impacto adverso (PAI); (ii) custos de execução, e (iii) a ausência de dados e, bem assim, da sua fiabilidade.
Porém, conforme referido, ocupando um lugar central na consulta, as divulgações ao nível da entidade e do produto levantam questões sobre a utilidade das divulgações e sobre as alterações que podem ser necessárias, em especial a eventualidade do SFDR ver alterado o racional que lhe está subjacente de regime de transparência para um regime de labeling.
Tudo considerado, a implementação do SFDR não tem, de modo algum, sido fácil, nem tão pouco livre de encargos para todos os stakeholders em geral.
Neste contexto, de incompletude, mas, sobretudo, de indefinição quanto a uma possível alteração estrutural ao SFDR, parece claro que as circunstâncias que circundam a aplicação e a eficácia do quadro regulatório ora em vigor apela à colaboração estreita entre todos os stakeholders, cuja atuação mais que atender aos circunstancialismos que se verificam, não os pode ignorar.
Esta colaboração passa por uma compreensão do papel que cada stakeholder é chamado a desempenhar neste quadro regulatório.
Assim, o papel das entidades que são objeto de deveres de transparência, passa por formular os mesmos nos moldes mais compreensíveis e objetivos possível, tendo por base dados que possam ter um substrato de fiabilidade, na maior extensão possível, espera-se que facilitem a compreensão, dos investidores e dos stakeholders em geral, da informação que publicam. Devem, pois, procurar atender ao conhecimento disponível para os investidores, e para as próprias entidades, procurando articular cabal e tempestivamente o preenchimento de eventuais lacunas interpretativas e aplicativas com as entidades europeias e ou nacionais competentes.
Por seu lado, as autoridades europeias e nacionais devem compreender que, com tal nebulosidade e na impossibilidade de dispormos – todos – de um quadro regulatório completo e previsível [e, quiçá, estável], a sua atuação deve caracterizar-se pela qualidade do serviço que prestam, resistindo à tentação de emitir entendimentos nacionais que, numa primeira perceção, poderão facilitar a aplicação pontual do regime, mas que a prazo trarão divergência regulatória e ou de supervisão, promovendo um quadro de aplicação fragmentada que não beneficia a aplicação do SFDR.
É, aliás, isso que se tem verificado na jurisdição nacional, na qual a CMVM, não prescindiu – como é seu dever – de exercer as suas atribuições e de procurar fomentar e modelar o funcionamento do mercado nacional e dos seus operadores nesta matéria, atuando através da sua supervisão, a qual se tem vindo a desenvolver em moldes profiláticos, apontando, por via da emissão de circulares, falhas e caminhos que devem ser considerados pelas entidades e investidores. Porque, o caminho é longo e importa que o façamos todos, juntos.
1 Diretor do Departamento Internacional e de Política Regulatória da CMVM. Advogado. As opiniões expedidas no presente texto são pessoais e apenas vinculam o seu autor. O presente texto sintetiza as ideias do autor, apresentadas no seu texto “The EU asset manager’s run for green”, em The Palgrave Handbook of ESG and Corporate Governance, editado pela Palgrave Macmillan.
2 Regulamento (UE) 2019/2088 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de novembro de 2019, relativo à divulgação de informações relacionadas com a sustentabilidade no setor dos serviços financeiros.